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Uberização Museal: Uma etapa antecessora da extinção laboral?

Atualizado: 15 de jan. de 2021

Anatacha Lochi​ (Educadora e Artista); Chimenia Sczesny (Educadora e artista); Danielle Brandão (Museóloga e arte educadora); Teitiane Oliveira (Educadora); Vinícius José (Arte educador) | Coletivo 4 + 1



Grupo de educadores em uma visita técnica institucional a um museu. Crédito: Beth Sczesny



O trabalhador brasileiro vem sofrendo consecutivas perdas de direitos desde o golpe parlamentar que impediu a continuidade do segundo mandato presidencial de Dilma Rousseff, no ano de 2016. Os índices de desemprego, que durante os 10 primeiros anos dos governos petistas (2003-2013) seguiram em constante queda - atingindo o inédito percentual de 4,3%, marca mais baixa da série histórica da Pesquisa Mensal de Emprego, realizada pelo IBGE, até o ano de 2014. A partir do golpe e da condução do peemedebista Michel Temer à presidência, iniciou-se a terceira experiência neoliberal brasileira - compreendemos aqui a primeira experiência como o Governo Collor (1990-1992) e a segunda os dois governos de FHC (1994-2002) -, que tem, entre outras marcas, a dissolução do mínimo de bem-estar social conquistado, o espírito privatista e o ataque ao trabalhador. Essa terceira característica valeu-se da recente elevação dos índices de desemprego e desocupação como retórica para aniquilamento de direitos trabalhistas, gozando de amplo apoio dos grandes meios de comunicação para a sedução e convencimento da classe trabalhadora.


Apesar dos graves golpes proferidos contra os trabalhadores como a Reforma Trabalhista - Lei nº 13.467, de 13 de julho de 2017 e a Nova Previdência - emenda constitucional nº 103, de 12 de novembro de 2019 e dos malabarismos estatísticos e supressão de dados, os índices de desemprego seguem altíssimos (12,6% em abril 2020). Em 2019, o IBGE apontou que 25,3% de toda a população brasileira vive abaixo da linha da pobreza, com menos de R$ 420 por mês.


A Uber​ Technologies Inc., ​fundada no ano de 2009, criada no auge da crise do mercado imobiliário estadunidense, é uma empresa multinacional com sede no Vale do Silício, na Califórnia - meca das empresas de alta tecnologia - e atua na área do transporte privado urbano. O aplicativo, ao operar a partir do enganoso mote de caronas remuneradas e sob verniz de empreendedorismo escamoteia um complexo sistema de precarização laboral, marcado por jornadas extenuantes, insegurança trabalhista e insalubridades diversas.


Ao aportar no Brasil no ano de 2014, a Uber encontrou ineficientes e caros sistemas de transportes públicos nas grandes cidades, uma massa de consumidores acrítica e ávida por serviços disponibilizados a partir de aplicativos de celulares, um protagonismo do setor terciário na economia e a recente ascensão dos índices de desemprego. O terreno era extremamente fértil para a massificação do serviço e para este modelo de negócio. Do patinete à cerveja gelada, o modelo absorve um crescente número de desempregados de outras áreas, enfraquecendo a abrangência dos contratos regidos pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT).


Tomando por empréstimo o termo “uberização” e aplicando-o na análise das agruras dos setores educativos em museus, compreendemos a uberização como etapa de um amplo processo de precarização que desponta desde a não realização de concursos nas instituições públicas; à promoção de terceirizações, atrelando a atividade à volatilidades de projetos dependentes de financiamento público via leis de incentivo (ou a ausência destes) com prazos de realização determinados; as contratações no modelo Microempreendedor Individual (MEI) - instituído pela Lei nº 128, de 19 de dezembro de 2008, que dá amparo legal, segurança jurídica e seguridade previdenciária aos trabalhadores informais; a utilização de estagiários no cumprimento de funções outrora realizadas por profissionais formados culminando com um possível (ou pretendido) fenecimento dessa atividade profissional no seio das instituições museais. Verificamos, nesse sentido, a uberização como uma etapa para extinção desta atividade profissional, preconizada como essencial ao campo desde meados do século passado.


Nesse sentido, a pandemia da COVID-19 surge no horizonte como um acelerador da esteira neoliberal nas relações de trabalho em museus e equipamentos de cultura e, não como paradigma. A implementação do trabalho remoto, as desvinculações trabalhistas, o boom​ ​das lives​ ​e toda possibilidade de virtualização laboral podem ser encaradas como características dessa etapa.


Encontramo-nos na alteridade, por esse motivo e, a fim de explicitar afinidades entre trabalhadores de áreas distintas, irmanados pela condição enquanto classe trabalhadora e assombrados pelos mesmos espectros precarizantes, indicamos, alertados pelo “Intertexto”, de Bertold Brecht (1898-1956), similaridades de depreciações laborais experimentadas por diferentes categorias, em especial os motoristas de aplicativos e entregadores.


Primeiro levaram os negros/ Mas não me importei com isso/ Eu não era negro/ Em seguida levaram alguns operários/ Mas não me importei com isso/ Eu também não era operário/ Depois prenderam os miseráveis/ Mas não me importei com isso/ Porque eu não sou miserável/ Depois agarraram uns desempregados/ Mas como tenho meu emprego/ Também não me importei/ Agora estão me levando/ Mas já é tarde/ Como eu não me importei com ninguém/ Ninguém se importa comigo. (BRECHT, [​20-],​ p.148)

Antunes (2018) considera​ a uberização do trabalho, no contexto do capitalismo financeiro informacional, como forma do tripé terceirização, informalidade e flexibilidade, que valoriza a adoção de processos de subcontratação, que incentiva a emergência de pequenos negócios com o culto ao empreendedorismo e à produção em massa de pessoas nano-empreendedoras – “uma mescla de burguês-de-si-próprio e proletário-de-si-mesmo” (Antunes, 2018:34).


Observa-se nas relações de trabalho​ travadas no âmbito de museus e equipamentos culturais a disseminação dessa gramática laboral neoliberal que, travestida de inescapável inovação, volta-se contra a dignidade humana no trabalho, aprofundando riscos e incertezas, intrínsecos à precarização do trabalhador. Nesse sentido, as contratações no modelo MEI merecem especial interesse.​


O caráter positivo da criação do MEI deve ser problematizado em vista da adoção desse modelo de contratação para profissionais como museólogos, educadores e outros, que outrora eram contratados em outros regimes tanto nas instituições públicas e privadas. Nesse ponto, o MEI serve como uma ferramenta de precarização/uberização do trabalho em museus e equipamentos culturais.


Ao​ se submeter a assinatura de um contrato com a instituição museal ou equipamento cultural, em determinados casos, há a subversão da atividade contratada ao trabalhador/microempreendedor, uma vez que determinados equipamentos ou empregadores exigem que sejam assumidas obrigações relacionadas à atividade profissional, postura e performance na empresa, pelo profissional MEI, que competem aos funcionário/servidores institucionalizados. Ao fim e ao cabo, o trabalhador/microempreendedor acata a situação no intuito de manter seu contrato, visto a necessidade de renda e de atuação na área profissional escolhida.


Sugerimos atenção sobre a situação dos “pejotizados” - refere-se à contratação de pessoas físicas por meio de pessoa jurídica no intuito de burlar direitos trabalhistas - em​ geral e, marcadamente, dos MEI’s contratados por museus e equipamentos culturais, pois essas modalidades de contratação nesses ambientes, salvo excepcionalidades, configuram-se como “dribles” trabalhistas, pois geralmente, os profissionais contratados nesses modelos não escapam de rotinas clássicas, tais quais marcação de ponto, realização de hora extra, escala de trabalho e outros, que caracterizariam vínculo empregatício tradicional. Assim sendo, conclui-se que os empregadores, ao optarem por precarizar contratualmente seus trabalhadores, visam uma mão de obra qualificada à custo reduzido. Tendo o trabalhador seus direitos subtraídos como no caso das férias e do décimo terceiro salário.


Para além dos contratos já citados anteriormente, estão presentes em equipes de museus e equipamentos culturais, estagiários, bolsistas, jovens aprendizes, monitores e voluntários. A Lei n° 11.788, de 25 de setembro 2008, estabelece normas quanto à contratação de estudantes na condição de estagiários. Somente os alunos matriculados regularmente em instituições de ensino público e particular, de educação superior, de educação profissional, do ensino médio e de educação especial poderão ser considerados estagiários, os quais deverão desenvolver atividades nas empresas desde que relacionadas à sua área de formação.


Apesar de não ser o propósito desse modelo de contratação,​ estagiários e jovens aprendizes podem ser vistos como mão-de-obra barata tanto pelo caráter inicial de suas carreiras quanto pela inexistência de vínculo empregatício e facilidade de dissolução desses contratos. A relação entre estágio e uberização museal não se dá na precarização direta sobre os contratos e sim na utilização destes fora do escopo justificatório, como etapa educacional necessária à este profissional em formação. Tratamos aqui a utilização da mão-de-obra do estagiário no lugar do profissional formado, todavia, essa questão, por mais que seja percebida por muitos é de difícil aferição.


No intuito de enfocar os casos dos estágios, realizamos uma pesquisa no início de junho de 2020 através da plataforma Google Formulários, com a intenção de obter relatos sobre as demissões e condições de trabalho. Repostado uma vez por semana em redes sociais voltadas a trabalhadores museais e grupos de diversos cursos de graduação, só obtivemos duas respostas, o que corrobora a dificuldade de aferimento supracitada.


Achei uma situação completamente desrespeitosa, porque eu e outro estagiário só ficamos sabendo do desligamento porque recebemos um E-MAIL do CIEE avisando. Nossa coordenadora não teve nem a decência de nos avisar (Resposta 1).

Eu ainda não fui demitida mas minha bolsa foi reduzida por quase a metade. Temo ser demitida, pois há rumores sobre isso. Outros estagiários amigos meus já tiveram o fim de seus contratos... Eu estou na expectativa de ser demitida também (Resposta 2).

Vale indicar que, apesar de terem sido citadas outras modalidades de contratação, como bolsistas, jovens aprendizes, monitores e voluntários, ainda não nos debruçamos sobre indicativos e outras questões a respeito destes.


A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele. Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se de faca e baioneta, para poupar o peito. A gente se acostuma para poupar a vida. Que aos poucos se gasta, e que, gasta de tanto acostumar, se perde de si mesma (Colosanti, 1996:09).

Já vivemos a uberização museal - terceirização de setores educativos, contratos precarizados, a rotatividade dos profissionais, culminando com a dissolução de equipes, utilizando a pandemia de COVID-19 como justificativa. Corrobora para essa interpretação a evidente escalada precarizante da atividade do educador museal. Escalada esta que pode ser avizinhada à sofrida por outras categorias. Por isso, a acuidade de análise, o aprofundamento crítico e a solidariedade entre trabalhadores são requeridos para a construção de uma noção holística sobre o tema. Os empecilhos para a tomada de consciência são muitos mas ressaltamos a ausência de sentimento de classe e a incipiência de ações coletivas.


Mesmo os profissionais que mantiveram seus contratos em vista da pandemia de​ COVID-19, cederam, para a manutenção destes, em questões​ relativas ao trabalho remoto, o embotamento das fronteiras entre o privado e o profissional, a perda de controle de horas trabalhadas no ambiente doméstico, os custos operacionais de um escritório em casa e, consequentemente, o desatrelamento da necessidade de um local próprio para a atuação de educadores em museus (guarnecido de mobiliário e equipamentos próprios). Equipes educativas, salvo raríssimas exceções, nunca gozaram de grande prestígio arquitetônico nas plantas dos museus e equipamentos culturais. A redução do trabalho de educadores museais a produção e realização de tele​ oficinas, uma ação interessante no período de fechamento, não pode, junto com a transformação do visitante em audiência remota (contabilizado), servir como modelo no momento pós pandemia. Estaríamos às margens da extinção laboral?


Referenciamos o ano de 1958 como marco indicativo da importância da intersetorialidade de ações e profunda colaboração entre setores educativos e outros setores que integram os museus. A realização do Seminário Regional da UNESCO sobre a função educativa dos museus, ocorrido no Rio de Janeiro, resultou na indicativa de trabalho conjunto entre curadorias e setores educativos. No presente momento, o protagonismo dos setores de educação torna-se movimento inescapável para a manutenção dos mesmos, como por exemplo o trabalho em parceria com setores de comunicação nas ações digitais, extensível ao momento pós-pandêmico.


Lutamos pela parceria entre todos os profissionais que compõe o corpo museal brasileiro, pois cremos que a precarização hoje praticada contra o trabalho educativo em museus seja a antessala da precarização geral do setor. A escolha de nulidades para cargos de alta complexidade de gestão na Cultura indica a intenção governamental para o campo e reafirma a necessidade dos trabalhadores museais se prepararem coletivamente para a defesa da categoria, da educação museal e de todo o campo, por extensão. Urge conhecer melhor a relação de trabalho e suas condições em comparação a outros profissionais do mesmo segmento. É necessário estarmos atentos e solidários à luta de outros trabalhadores uberizados como o caso dos entregadores delivery​ - microempreendedores de si mesmos, ​e sua recente organização enquanto categoria, precarizada desde a origem e que em decorrência da pandemia, se perceberam empoderados e responsáveis por uma atividade essencial.


Qual o futuro dos museus e da educação museal pós-pandemia? Como será o retorno - haverá retorno da atividade educativa in​ loco​? Em havendo, como nos defendermos do avanço precarizante? Como aproveitar do capital comunicacional de realização de atividades remotas adquirido durante a quarentena sem que isso colabore para a extinção do trabalho do educador museal? Como alertado por Gal em “Divino Maravilhoso”, de Caetano e Gil em 1968, “É preciso estar atento e forte”.





 


Referências:

Antunes, R. (2018). O privilégio da servidão:​ o novo proletariado de serviços na era digital. São Paulo: Boitempo.

Colasanti, M. (1996). "Eu​ sei, mas não devia".​ Editora Rocco - Rio de Janeiro, p. 09.


Indicações para leitura:

Abílio, L. C. (2017). Uberização do trabalho: subsunção real da viração. Passa Palavra.

Chagas, M. & Rodrigues, M. V. M. (2019). A função educacional dos museus: 60 anos do Seminário Regional da Unesco. Rio de Janeiro. Museu da República, 2019.

Crary, J. (2014). 24/7 - Capitalismo tardio e os fins do sono. São Paulo: Cosac Naify.

Fleming, P. (2017). The human capital hoax: work, debt and insecurity in the era of​ uberization.​ Organization Studies​, New Castle, v. 38, n. 5.

Gandini, A. (2018). Labour process theory and the gig economy. Human​ Relations, p. 1- 18.

Scholz, T. (2017). Cooperativismo​ de plataforma.​ Tradução: Rafael A. F. Zanatta. São Paulo: Editora Elefante, Autonomia Literária & Fundação Rosa Luxemburgo.

Slee, T. (2017). Uberização​:​ a nova onda do trabalho precarizado. Tradução João Peres. São Paulo: Editora Elefante.

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