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A outra face da uberização: o trabalho em cozinhas para delivery sob o capitalismo periférico financeirizado

Júlia Zenni Lodetti | UFSC



“O trabalhador invisível da cozinha esconde-se

em sua labuta" (SANTANA, 2010, p. 88)


 

O presente texto representa um resumo de parte da minha pesquisa de mestrado em Sociologia no Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Ciência Política da Universidade Federal de Santa Catarina. A pesquisa está em andamento e o que foi selecionado para esta participação no blog do Labor Movens representa a fração da pesquisa que mais conversa com a proposta desse grupo: as condições de trabalho no turismo e seus setores adjacentes. Mais especificamente, trato das elaborações feitas em relação à divisão sexual do trabalho no trabalho em cozinhas que realizam entrega por aplicativo.


O trabalho em cozinhas de restaurantes que realizam entregas por aplicativos não foi objeto  escolhido ao acaso. Foram as curiosidades iniciais sobre as condições de trabalho de entregadores e a percepção da significativa quantidade de pesquisas sobre esse setor que levaram à busca por outro grupo de trabalhadores/as que tivessem relação com o trabalho uberizado e fossem tão cotidianos quanto. O trabalho em cozinhas se enquadrou, então, de forma ambígua na motivação inicial. Ambígua pois: é um trabalho essencial e presente no cotidiano da produção da vida, especialmente em cidades, assim como os entregadores por aplicativo o são, mas, diferentemente destes, não pode ser caracterizado como visível. É um trabalho invisível no sentido literal, pois é, em geral, realizado em espaços fechados, sobretudo nas cozinhas de preparo para delivery, mas também o é no sentido figurado, pois é uma atividade que não parece incitar comoção e engajamento de nenhuma parte, sendo praticamente ignorada, ou até mesmo apagada.


Crédito: Thiago Gadelha


Bianca Briguglio (2022) nos apresenta, dentre outros resultados de sua pesquisa, a maior presença de mulheres nas cozinhas e posições menos renomadas. Ela evidenciou o processo em que quanto mais o ofício se profissionaliza, mais ele se masculiniza, o que reforça a concepção construída de que as mulheres têm qualidades e dons naturais, instintivos em relação ao cozinhar, e não qualificações profissionais (HIRATA, 2009).


Sobre o caráter amador do trabalho feminino em cozinhas, em pesquisa de campo, a maioria das entrevistadas relataram aprender a cozinhar com a família, ou mais precisamente com as mães e/ou avós. Entretanto, esse contato inicial, muito familiar e afetuoso, com o ofício, não elimina a trajetória de capacitação e profissionalização dessas pessoas. Flora[1] relatou ter esse vínculo bastante relacionado ao seu passado e suas antecessoras, porém, deu igual ênfase aos diversos cursos que fez e, como é especial da qualificação como cozinheira/o, os lugares diversos em que trabalhou e se qualificou. Também segundo Briguglio (2022), o talento e o dom são constantemente usados para caracterizar o trabalho em cozinhas, tanto pelos/as próprios/as cozinheiros/as quanto por programas de televisão, por exemplo. Porém, ela revela como:


“O dom, entretanto, oculta relações de gênero, classe e raça que engendram as relações de poder da nossa sociedade, naturalizando conhecimentos e saberes como algo com o qual a pessoa nasce e encobrindo as desigualdades sociais” (BRIGUGLIO, 2022, p. 73).

Portanto, a divisão sexual do trabalho permite observar a dinâmica em que o trabalho feminino mantém-se no âmbito privado  enquanto o masculino no público e a naturalização do trabalho feminino  — que são traços marcantes do trabalho em cozinhas. Da mesma  forma, permite compreender tanto a separação quanto a hierarquização (KERGOAT, 2009) de funções “femininas” e “masculinas” no trabalho em cozinhas. Há tanto a designação do papel social da mulher e do homem no trabalho quanto a implicação de um valor social maior aos trabalhos desempenhados por homens. Scavone (2008) descreve a heteronormatividade da relação entre masculino e feminino, ressaltando que figura como algo já estabelecido e imperceptível. Molinier e Welzer-Lang (2009) apontam a construção da feminilidade do contexto do trabalho pela seguinte dualidade: para buscar reconhecimento em sua carreira, performam a virilidade típica da construção da masculinidade e depreciativa do feminino; e ao mesmo passo, suas competências são lidas como dons e qualidades inerentes à natureza feminina. No contexto de trabalho dentro de cozinhas de restaurantes profissionais, há um ambiente que enaltece o que é tido dentro da construção heternormativa hegemônica como masculino, ao qual as mulheres se veem forçadas a se adaptar (BRIGUGLIO, 2022).


Essas distinções são consolidadas através da legitimidade que foi construída historicamente acerca da associação dos papéis sociais ao sexo biológico e a natureza de cada um deles. Kergoat (2009) problematiza a confusão que se faz dos grupos sociais com a categoria biológica, ressaltando que as relações sociais de sexo dizem respeito singularmente aos primeiros e suas tensões antagônicas: “as diferenças constatadas entre as atividades dos homens e das mulheres são construções sociais, e não provenientes de uma causalidade biológica” (KERGOAT, 2009, p. 71).


Elisabeth Lobo (2011) vai além de apenas denunciar o caráter falacioso tanto do aspecto natural do trabalho de reprodução feito por mulheres, quanto da suposta facilidade das suas atividades, e caracteriza como a feminização e desqualificação de setores e atividades são tidos como consequência um do outro. Ela caracteriza como a maior presença de mulheres na indústria passa a ser vista como uma simplificação do trabalho operário, visto que as mulheres seriam, segundo essa ótica, trabalhadoras inerentemente desqualificadas. Nas palavras da autora: “a questão [...] está no fato de que o sexo daqueles(as) que realizam as tarefas, mais do que o conteúdo da tarefa, concorre para identificar tarefas qualificadas ou não qualificadas” (LOBO, 2011, p.158).


Além disso, o trabalho na cozinha entra num leque de saberes aproveitados das experiências femininas no âmbito doméstico transmutados para o mercado de trabalho quando este e a força de trabalho feminina passaram a ter uma relação de mútua necessidade. A respeito desse transbordamento das funções femininas pelas fronteiras do âmbito privado ao público, Lapa (2020, p. 259) desenvolve: “esta mão de obra feminina como também dotada de um tipo específico de savoir faire derivado de sua experiência na produção doméstica”. Santana (2010, p.101) aborda essa imbricação entre o cozinhar profissional e doméstico, ressaltando o que chama de “domesticidade do labor culinário”, sendo o ambiente de trabalho também presente no lar. Aponta a culinária como herança culturalmente feminina que “replica as posições dos gêneros na convivência social desta cozinha, nas divisões dos espaços de labor e nas representações de poder” (SANTANA, 2010, p. 102).

 


TRABALHO FEMININO E PRECARIEDADE


São diversos/as os/as autores/as que concluem sobre a relação próxima, se não dependente, entre trabalho feminino e precariedade (HARVEY, 1992; LOBO, 2011; ABÍLIO, 2014; LAPA, 2018; DRUCK,  2023). Há, ao mesmo tempo, a tendência do trabalho feminino ser o mais afetado pelas transformações que tornam mais precárias as condições de trabalho e emprego, e a fundamentação dessa precariedade que se espalha para outros trabalhos justamente no que historicamente caracterizou o trabalho feminino. Abílio (2014, p.88) destaca como “características que hoje definem a flexibilização há muito são constitutivas das ocupações desempenhadas pelas mulheres” e enfatiza como a indefinição do trabalho como trabalho é algo que é característico do trabalho feminino e se reproduz em movimentos políticos de flexibilização do trabalho.


Lobo (2011) centraliza a marginalização do trabalho feminino como próprio da lógica capitalista, tendo suas raízes no descarte das mulheres como sujeito social que é perpetuado pelo discurso econômico, cujo tom é elaborado para soar geral, sexualmente cego. Uma das transformações do trabalho elencadas por Harvey quando analisando a acumulação flexível como novo modo de regulação do capital diz respeito ao trabalho das mulheres “que acessam o mercado de trabalho através de empregos precários, em tempo parcial, subcontratadas, e substituindo os homens, com salários mais baixos e expostas à maior rotatividade e insegurança” (DRUCK, 2023, p. 486).


É também o trabalho precário que se estabelece como porta de entrada das mulheres para o mercado de trabalho, inclusive pela flexibilidade contida nele possibilitar que estas trabalhadoras também atendam às demandas do trabalho doméstico. Em uma percepção de classe, Abílio (2014, p. 86-87) também compreende como “as mulheres das famílias de baixa renda assumem o sustento familiar no papel de “viradoras”, desempenhando as mais diversas ocupações temporárias, informais e domiciliares — de “bicos” e trabalhos domésticos a inscrição em programas sociais.”



Isso se relaciona com o fato de que, em diversas atividades, esse processo de feminização de setores reflete um transbordamento de tarefas domésticas, que são historicamente realizadas por mulheres, como a limpeza e a cozinha. Em especial, as mulheres negras acabam por ocupar estas posições baseadas naquilo que Lélia Gonzalez (2020, p.44) nomeou de “ocupações refúgio”, cuja remuneração é, na vasta maioria das vezes, a mais baixa. Similarmente, Lapa (2018, p.274) orienta que no “contexto de reorganização neoliberal do trabalho, há atividades confiadas maciçamente às mulheres racializadas e empobrecidas com base não em uma “natureza”, mas em um conjunto de leis e instituições que as impele e orienta para os trabalhos onde são necessárias.” O que Lobo (2011) e outras autoras que escrevem sobre a divisão sexual do trabalho ressaltam é que esse processo de feminização de setores e tarefas é utilizado como mais uma forma de baratear os custos de produção com força de trabalho, reproduzindo segregações e hierarquizações baseando-se em práticas construídas social e historicamente com o objetivo de dominar e lucrar cada vez mais.

 


A UBERIZAÇÃO DO TRABALHO EM COZINHAS


Nos debates públicos e acadêmicos sobre a plataformização do trabalho e os aplicativos de entrega, desde as publicações e discursos até à composição imagética da discussão remete aos entregadores e suas mochilas. Sejam eles de motocicleta ou bicicleta, manifestações, coletivos, pronunciamentos que vão até o presidente da república, e decisões significativas do corpo jurídico nacional, são todos voltados para a entrega. Em outro texto elaborado para o blog do Labor Movens em parceria com Briguglio, comentamos a esse respeito:

 

Trabalhadoras e trabalhadores que atuam em cozinhas de restaurantes, grandes ou pequenos, e quem realiza entregas por aplicativos de delivery são praticamente passíveis de esquecimento total. O aplicativo de entregas – veja bem: não se trata de um aplicativo de alimentação, mas de entregas – representa a fetichização total de um serviço de alimentação, na qual a comida aparece pronta quase como mágica. Afinal, quando a refeição é comprada no aplicativo, não há contato algum com o setor da produção. No máximo o cliente encontra o entregador – e olhe lá. (BRIGUGLIO; LODETTI, 2024).

 

Esse processo se relaciona diretamente com a degradação do ofício da qual discutia Braverman (1980). Ele destaca, muito antes de qualquer advento de aplicativo ou plataforma, outro fator pertinente à análise sobre o trabalho de preparo de comidas no contexto de capital monopolista: a destruição do ofício. Citando a então nova tecnologia dos alimentos congelados, comenta:


“Cozinheiros chefs e cozinheiros de graus superiores, a mais elevada perícia da categoria, dão exemplo esclarecedor da maneira pela qual um ofício antigo e valioso está sendo destruído até mesmo em sua última cidadela, luxo e bom gosto” (BRAVERMAN, 1980, p. 310).

É evidente que os “cozinheiros chefes” ou “de graus superiores” aos quais ele alude não são as mesmas pessoas das quais me refiro na pesquisa quando busco analisar e conversar com trabalhadores/as de cozinhas vinculadas a aplicativos. Porém, acredito ser ímpar a contribuição do autor ao entendimento de que o capital monopolista e o modo de controle e organização do trabalho que se impõe com ele destroem os ofícios e os destituem de seu conteúdo (BRAVERMAN, 1980), algo que estaria mais atual precisamente com a uberização. O cozinhar sob a lógica da plataforma é muitas vezes “esvaziado de seu valor cultural e afetivo” (BRIGUGLIO; LODETTI, 2024) por estar interposto por relações de mercado, portanto:

 

Na lógica de exploração do capital, as cozinhas profissionais tornam-se espaços de produção que também são pautados por critérios como efetividade, eficácia e a dinâmica de reduzir custos para aumentar lucro – o que frequentemente se traduz na redução do quadro de profissionais e superexploração daqueles que permanecem (BRIGUGLIO; LODETTI, 2024).

 

É nesse tipo de exigência imposta pelas formas de organização do trabalho e acumulação de capital que o formato de cozinhas para delivery conhecido como dark kitchens emergem como um modelo “ideal”. Vistas como uma eficiente e positiva tendência de mercado, incentivada como um modelo a ser seguido, essas cozinhas funcionam de maneira exemplar sob os moldes da maximização de lucro e redução de custos: não existe espaço para clientela, é apenas a cozinha, onde as refeições são produzidas, muitas vezes mais de uma marca ou tipo de culinária opera no mesmo local — que é, em geral, alugado. São diversos os formatos que as dark kitchens assumem, mas uma característica lhes é comum:


“Elas dependem do serviço de entrega, o famoso delivery, que leva a refeição diretamente para o cliente. A separação entre a cozinha e o cliente aumenta. Quem consome a comida é totalmente apartado de seu processo de produção.” (BRIGUGLIO; LODETTI, 2024).

O trabalho no setor de alimentação é componente do trabalho no turismo, portanto, sua análise numa perspectiva crítica e historicamente contextualizada mostra-se relevante. Por isso, buscou-se demonstrar neste texto como o trabalho em cozinhas, com suas inúmeras singularidades, representa um setor que ilustra fielmente o que se compreende dos estudos da sociologia do trabalho, com ênfase no processo e condições de trabalho, e a teorização da divisão sexual do trabalho.



Referências Bibliográficas


ABÍLIO, Ludmila Costhek. Sem maquiagem: o trabalho de um milhão de revendedoras de cosméticos. São Paulo: Boitempo, 2014.

 

BRAVERMAN, Harry. Parte I: capítulos 4. A gerência científica e 5. Principais efeitos da gerência científica, In: Trabalho e capital monopolista: a degradação do trabalho no século XX. Rio de Janeiro: ZAHAR Editores, 1980

 

BRIGUGLIO, Bianca. Cozinha é lugar de mulher?: a divisão sexual do trabalho em cozinhas profissionais. Marília: Lutas Anticapital, 2022. 293 p.

 

BRIGUGLIO, Bianca; LODETTI, Júlia Zenni. Aos e às ninguéns que ainda cozinham. Textos para Debate. ABET, 2024. Disponível em: http://abet-trabalho.org.br/aos-e-as-ninguens-que-ainda-cozinham/ . Acesso em: 15 mar. 2024.

 

DRUCK, Maria da Graça. David Harvey: as teses sobre acumulação flexível, neoliberalismo e centralidade do trabalho. In: OLIVEIRA, Roberto Véras de; RAMALHO, José Ricardo; SANSON, Cesar (org.). Diálogos críticos: o pensamento estrangeiro e a sociologia do trabalho no brasil. São Paulo: Annablume, 2023. p. 473-498.

 

GONZALEZ, Lélia. A mulher negra na sociedade brasileira: Uma abordagem político econômica. In: RIOS, Flavia; LIMA, Marcia (orgs). Por um feminismo afro-latino-americano. Rio de Janeiro, Zahar, 2020. p. 49-64

 

HARVEY, David. A condição pós-moderna. São Paulo: Edições Loyola, 1992

 

HIRATA, Helena. A Precarização e a Divisão Internacional e Sexual do Trabalho. Sociologias, Porto Alegre, v. 11, n. 21, p. 24-41, jan. 2009. 

 

KERGOAT, Danièle. Divisão sexual do trabalho e relações sociais do sexo. In: HIRATA, Helena et al (org.). Dicionário crítico do feminismo. São Paulo: Editora Unesp, 2009. p. 67-77.

 

LAPA, Thaís de Souza. Divisão sexual do trabalho sob a ordem neoliberal. Temáticas, Campinas, v. 52, n. 26, p. 247-284, ago-dez. 2018.

 

LAPA, Thaís de Souza. O gênero do trabalho operário. Marília: Lutas Anticapital, 2020.

 

LOBO, Elisabeth Souza. A divisão sexual do trabalho e as ciências sociais. In: A classe operária tem dois sexos. São Paulo, Perseu Abramo, 2011.

 

MOLINIER, Pascale; WELZER-LANG, Daniel. Feminilidade, masculinidade e virilidade. In: HIRATA, Helena et al (org.). Dicionário crítico do feminismo. São Paulo: Editora Unesp, 2009. p. 101-106.

 

SANTANA, Gizane Ribeiro de. Os Sentidos do Trabalho no campo da Alimentação Coletiva. 2010. 112 f. Dissertação (Mestrado) - Curso de Programa de Pós-Graduação em Saúde, Ambiente e Trabalho, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2010.

 

SCAVONE, Naira. “O super chefe e a menina prodígio”: as posições ocupadas pelo gênero na gastronomia profissional. Revista Fazendo Gênero 8: Corpo, Violência e Poder, Florianópolis, 2008. Disponível em: . Acesso em: 28 out. 2007.


[1] Flora, 61 anos, natural de Pelotas, Rio Grande do Sul. Cozinheira e dona de restaurante de marmitas. (Os nomes foram alterados para preservar a  identidade das/os entrevistadas/os).

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