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Tripulação de navios de Cruzeiros e a COVID-19: o amargo adiamento da repatriação

Atualizado: 15 de jan. de 2021

Angela Teberga | UFT


O iminente alastramento de doenças infectocontagiosas dentro de um navio sempre foi motivo de tensão entre os marinheiros, e um desafio de difícil resolução para os profissionais de controle sanitário. É motivo de tensão entre os tripulantes porque, estando longe de suas casas, temem adoecer e não receber o tratamento médico adequado especializado. E é também um desafio da ordem do controle sanitário porque o confinamento, em conjunto com a alta concentração de pessoas em um único espaço, potencializa a transmissão de doenças entre os embarcados, requerendo rigorosos protocolos de controle por parte das autoridades sanitárias e programas de prevenção por parte da indústria de cruzeiros.


A COVID-19, doença provocada pelo coronavírus SARS-CoV-2, foi descoberta em 31 de dezembro de 2019 após casos registrados em Wuhan (China). Em 11 de março de 2020, a Organização Mundial da Saúde (OMS) passou a caracterizá-la como uma pandemia, em razão dos níveis alarmantes de disseminação e gravidade da doença, tendo alcançado quase a totalidade dos países do mundo. O perigo da doença está relacionado ao seu alto poder de contágio, inclusive entre os infectados assintomáticos. A alta transmissibilidade da doença é ainda maior em espaços confinados, de acordo com Mizumoto & Chowell (2020), incluindo hospitais, prisões, igrejas e, por suposto, navios de cruzeiros.


Entre 9 e 26 de março, todas as principais companhias de cruzeiros suspenderam as operações, de maneira voluntária e temporária, em toda sua frota. Os principais motivos da paralisação teriam sido: evitar o contágio do novo coronavírus entre tripulantes e passageiros, além da repentina queda da demanda e instabilidade operacional.


Depois de suspendidas as operações dos navios e desembarcada a maioria dos passageiros, viria o grande problema que os tripulantes precisariam enfrentar: a saga do retorno para casa. Os tripulantes ficaram presos nos navios, por uma série de razões que explicaremos adiante, sem perspectivas de repatriamento. Em um artigo de 17 de maio, o Jornal Miami Herald estimou que mais de 100.000 tripulantes ainda aguardavam repatriamento; desse montante, pouco mais da metade estava em águas estadunidenses, de acordo com o jornal BBC. Já em um artigo de 15 de junho, o Jornal Miami Herald estimou que 40.000 tripulantes de cruzeiros ainda não haviam sido repatriados. Em 8 de agosto, o periódico USA TODAY estimou que 12.000 tripulantes ainda se encontravam nas águas estadunidenses.


Houve queixas diversas sobre a clausurara forçada. Em um artigo do Jornal Zeit, de 28 de maio, as jornalistas descreveram histórias de três trabalhadores que ainda aguardavam repatriamento. Um deles afirmou que se sentia “como em uma prisão”, em especial quando o navio estava no porto sem poder desembarcar; outro se queixava da falta de informações, do acesso pago à internet para comunicação com os familiares e das cabines pequenas e sem ventilação natural.


Além de estarem presos nos navios (como se fosse pouco), também precisaram conviver com a proliferação do novo coronavírus. Muitos tripulantes teriam se contaminado durante o período de quarentena, pois, nos primeiros dias de quarentena forçada, as medidas de isolamento e higienização do navio teriam sido insuficientes. O navio Celebrity Infinity (Celebrity Cruises) ficou conhecido internacionalmente por oferecer uma festa aos tripulantes durante a quarentena, mesmo sabendo de todos os riscos que poderiam ser gerados. Esse não foi o único caso, também sobre o Celebrity Apex (Celebrity Cruises) há relatos parecidos. Uma das tripulantes afirma à reportagem do Click Orlando: “quando o mundo todo estava falando sobre distanciamento social, eles organizaram uma festa da equipe".


A situação tornou-se tão tensa entre os embarcados que houve, inclusive, notícias de suicídios de tripulantes. Jim Walker, em seu blog Cruise Law News, afirma que podem ter acontecido entre 6 e 10 suicídios de tripulantes dos navios Jewel of the Seas, Mariner of the Seas, Harmony of the Seas (Royal Caribbean), Carnival Breeze (Carnival Cruise), Regal Princess (Princess Cruises), AIDAblu (AIDA), Vasco da Gama (Cruise and Maritine Voyages) e Scarlet Lady (Virgin Voyages). Todos esses faleceram por causas ainda não devidamente esclarecidas.


Depois dessas mortes, vários protestos eclodiram em diferentes navios. A imagem a seguir mostra uma manifestação de tripulantes do navio Majesty of the Seas (Royal Caribbean), que penduram a faixa com a mensagem: “De quantos suicídios precisamos?”.


Manifestantes reunidos no navio Majesty of the Seas. Fonte: BBC


As queixas se deram, em especial, pelo adiamento do plano de repatriamento dos trabalhadores. Os acordos de repatriamento foram adiados ou alterados diversas vezes, causando confusão e descontentamento entre a tripulação. Um casal de tripulantes brasileiros, Caio Saldanha e Jessica Furlan, relatou em detalhes o período de quarentena a bordo pelas redes sociais. O DJ afirmou à reportagem do Jornal Hoje em Dia, publicada no dia 04 de maio, que não estava confiante com o agendamento da repatriação e que a falta de perspectivas gerou um profundo clima de tensão entre toda a tripulação. “Estamos sendo tratados como carga”, afirmou Caio ao Jornal Metrópoles. A repatriação do casal aconteceu somente nos primeiros dias de junho.


Mas, afinal, o que aconteceu para que os tripulantes não conseguissem repatriação, assim como foi viabilizada para os passageiros?


Num primeiro momento, as empresas não acreditavam que a suspensão demoraria tanto tempo, pois acreditavam que a crise passaria rapidamente assim como aconteceu com a pandemia da SARS (Síndrome Respiratória Aguda Grave), em 2002. De acordo com o mapeamento do Cruise Mapper, algumas empresas previam retornar as operações em até 30 ou 60 dias, é o caso da Carnival Cruise, que previu o retorno para 9 de abril, e da Celebrity Cruises, para 11 de maio. Seria muito oneroso para as armadoras repatriar os tripulantes, de diferentes lugares do mundo, e trazê-los novamente para os mesmos navios; de maneira que pareceu às empresas mais interessante esperar o retorno das operações com os tripulantes embarcados.


Ocorre que a disseminação do vírus e por consequência a crise pandêmica vem sendo, desde então, muito maior do que as armadoras previam. E, enquanto as armadoras aguardavam o retorno das atividades, órgãos de controle sanitário de diversos países estipulavam proibições de navegação aos navios de cruzeiros em suas águas territoriais. Com isso, a tripulação precisou realizar uma quarentena forçada a bordo, até que os navios fossem liberados para transitar e atracar em algum território. A situação mais grave aconteceu com os tripulantes dos navios localizados nas costas leste e oeste dos EUA, cujo órgão de controle sanitário, Centers for Disease Control and Prevention – CDC, estipulou regras rígidas para o desembarque desses tripulantes.


Mesmo após o período da quarentena forçada, a repatriação foi mais uma vez adiada, em razão das restrições internacionais às viagens. Segundo pesquisa da OMT, a pandemia do COVID-19 levou 100% dos destinos turísticos do mundo (217 destinações) a impor essas restrições. Do total, 45% dos países fecharam total ou parcialmente suas fronteiras para turistas; 30% suspenderam voos internacionais total ou parcialmente; 18% proibiram a entrada de estrangeiros de países específicos ou que transitaram por esses países; e 7% aplicaram medidas como quarentena ou auto isolamento por 14 dias.


Com o tráfego aéreo limitado, algumas empresas optaram por levar os tripulantes para seus países de origem por navegação (quando a logística permitia, por suposto). Esse é o caso do Ruby Princess (Princess Cruises), que estava em operação na Austrália e chegou em Manila no dia 7 de maio para repatriamento dos 214 tripulantes filipinos ainda embarcados. Também foi o caso do Island Princess (Princess Cruises), cuja tripulação sul-africana foi recebida no porto da Cidade do Cabo com o hino nacional da África do Sul. Porém, mesmo nesses casos, foi exigido um período de quarentena no porto para que os tripulantes possam desembarcar.


Junto de todos os problemas mencionados, houve também uma negligência das armadoras, que tardaram por organizar os tripulantes de navios próximos por nacionalidade e, em seguida, financiar voos charters para o repatriamento. Como se não fosse o bastante, há várias queixas da tripulação sobre a falta de informação concedida pelos diretores, o compartilhamento de notícias falsas sobre o repatriamento e, inclusive, queixas de ameaças aos tripulantes por vazamento de informações para as mídias sociais e o mundo externo, como denunciou a reportagem do Business Insider.


Nesse interim, o próprio CDC anunciou que os navios já estavam autorizados a atracar em território estadunidense, desde que as armadoras cumprissem todos os critérios estabelecidos pelo órgão, incluindo o fato de não haver casos confirmados de COVID-19 a bordo nos últimos 28 dias. Além disso, o CDC também exigiu: apresentar um plano de resposta de “No Sail Order”, medida que restringe a navegação pelos mares de determinado território, que forneça um ambiente seguro para os tripulantes trabalharem e desembarcarem com segurança em viagens não comerciais.


As armadoras, por sua vez, não demonstraram qualquer empenho para a regularização da situação e repatriação dos seus tripulantes, ao menos em território estadunidense. O CDC atualiza a planilha de autorização dos navios para desembarque semanalmente. No dia 23 de junho, dos 50 navios que solicitavam autorização para desembarque nos EUA, apenas 1 (2%) teve a viagem comercial permitida, o Grand Celebration (Bahamas Paradise Cruise Line), 44 navios (88%) estavam com seus planos em revisão e 5 navios (10%) aguardando confirmação assinada.


Alguns navios, no sentido de burlar as regras do CDC, optaram por navegar até países próximos aos EUA, que apresentavam regras mais brandas do que as do órgão sanitário estadunidense. Esse foi o caso da empresa Royal Caribbean, cujos principais navios no Caribe e Atlântico atracaram no porto de Bridgetown, em Barbados, para repatriamento da tripulação através de voos charters. O navio Harmony of the Seas (Royal Caribbean), por exemplo, chegou em Bridgetown, capital de Barbados, país insular na América Central, no dia 27 de maio.


A situação conseguiu se agravar pois muitos dos tripulantes embarcados, que aguardavam repatriamento, não recebiam o pagamento integral que lhes era de direito. Para a reportagem do USA Today, um tripulante afirmou que não estava sendo mais pago pois era considerado trabalhador “não-essencial” quando não há passageiros a bordo. Embora recebessem hospedagem, refeições e assistência médica do navio gratuitas, a grande maioria das armadoras acordou com a tripulação um pagamento irrisório diário pelo tempo a bordo. A Bahamas Paradise Cruise Line fez promessas de um pagamento único de US$ 1.000 para manter a tripulação trabalhando durante a pandemia. A Royal Caribeean pagou um salário de US$ 13 dólares por dia. A Norwegian Cruise Line reduziu os salários de toda a tripulação em 20%.


A Folha Santista, em uma reportagem de 27 de março, denunciou a armadora Costa Cruises, que ofereceu duas alternativas indecorosas à tripulação brasileira: 1) Encerrar o contrato, a pedido do tripulante; ou 2) Desembar sem pagar a multa pela quebra de contrato. O advogado ouvido pela reportagem, Adriano Ialongo, afirmou que, à época, os tripulantes eram impelidos a assinar o pedido de “sign off” (demissão), em troca de uma “compensação futura”, ou seja, o retorno do tripulante ao navio para término do contrato suspenso, quando enfim receberia o que lhe é de direito.


A CLIA, International Cruise Lines Association, organização de direito privado que reúne as principais armadoras de cruzeiros do mundo, prestou uma homenagem aos tripulantes, no dia 25 de junho de 2020, pelo Dia Internacional dos Marítimos. Na oportunidade, afirmou que “trabajan las 24 horas por el bienestar de los miembros de la tripulación que permanecen a bordo y para facilitar, en colaboración con los gobiernos locales y los puertos, su regreso a casa seguro”. Não se tem conhecimento, contudo, qual tipo de ajuda a associação efetivamente prestou aos tripulantes que aguardavam repatriamento.


Concordamos que neste caso, em especial, houve um dilema de difícil resolução pois, embora o direito à repatriação esteja previsto em diversos tratados internacionais, também a saúde pública é considerada um dos direitos humanos fundamentais e, portanto, a adoção de medidas que limitem a circulação do vírus, entre elas o fechamento das fronteiras, deva ser necessária em situações como essa. Ocorre que se percebeu, ao passar das semanas e meses, que o adiamento da repatriação dos tripulantes não estava mais relacionado puramente à proibição de circulação dos navios em territórios estrangeiros, mas sim à morosidade, negligência e descuido das empresas para com seus trabalhadores.


Convém lembrar que a repatriação é um dos mais antigos e fundamentais direitos do trabalhador marítimo. A primeira convenção internacional sobre o direito ao repatriamento é datada de 1926, poucos anos após a fundação da Organização Internacional do Trabalho, datada de 1919.


A Convenção nº 166 da Organização Internacional do Trabalho, cujo foco específico é a repatriação de trabalhadores marítimos, entrou em vigor no plano internacional em 1991, revendo e atualizando a convenção de mesmo tema do ano de 1926 (Convenção nº 23). O artigo 2 da convenção trata do direito de todo marinheiro a ser repatriado. O artigo 4 dispõe sobre a responsabilidade da armadora em organizar a repatriação, por meios apropriados e rápidos, sendo o meio de transporte normal a via aérea, bem como custear as despesas da repatriação. O artigo 10 fixa que os membros que ratificarem a convenção devem facilitar a repatriação dos marítimos que atracarem em seus portos ou que cruzam suas águas territoriais ou vias internas de navegação (ILO, 1987).


A Convenção do Trabalho Marítimo (MLC 2006), por sua vez, possui a Regra 2.5 sobre a repatriação dos marítimos, cujo objetivo é “garantir aos marítimos a possibilidade de regresso a casa”. É direito do tripulante o repatriamento no caso de, entre outras situações previstas no item 1, não ser possível pedir-lhe para exercer as funções previstas no contrato de trabalho. Ainda, o item 8 fixa que os membros signatários não podem recusar a nenhum tripulante “o direito a ser repatriado devido à situação financeira do armador, ou por este se declarar impossibilitado” (ILO, 2006).


A Federação Internacional de Trabalhadores de Transportes (ITF) organizou a campanha “Basta!”. O movimento tem como principal apelo: “You have done your job, performed your duties, and accepted that you were unable to return home in the beginning in order to contain the spread of Covid-19 – but no more. Enough is enough”. A campanha tem a intenção de chamar a atenção das autoridades internacionais e CEOs de armadoras que manter a tripulação presa nos navios, após todo o período de quarentena forçada, não pode ser mais aceitável.


Sobram os exemplos de irregularidades quanto à repatriação dos tripulantes, além de abusos patronais e violações de direitos humanos dentro dos navios. Muitos adoeceram, alguns perderam a vida. Os trabalhadores dos navios são sempre os primeiros a embarcar e os últimos a desembarcar. Desta vez, porém, o desembarque demorou muito mais do que o imaginado. Ficaram presos em seu ambiente de trabalho, aguardando ansiosamente o momento em que pisariam em terra firme.



 

Referências:

International Labour Organization – ILO. (2006). Maritime Labour Convention, 2006. Adotada pela Conferência em sua 94ª sessão. Genebra, Suíça: ILO.

International Labour Organization – ILO. (1987). C166 - Repatriation of Seafarers Convention. Adotada pela Conferência em sua 74ª sessão. Suíça: ILO.

Mizumoto, K. & Chowell, G. (2020). Transmition potencial of the novel coronavirus (COVID-19) ondoard the diamond Princess Cruises Ship, 2020. Infectious Disease Modelling, 5, 264-270. https://doi.org/10.1016/j.idm.2020.02.003.

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