Edilene Vilas Bôas, Angela Teberga & Caroline Bahniuk | UnB
No dia 12 de fevereiro de 2025, há pouco menos de quinze dias para o carnaval de 2025, acordamos com a notícia de um incêndio de grande proporção em uma fábrica têxtil que produzia fantasias de carnaval para escolas de samba de segunda categoria do Rio de Janeiro. O incêndio atingiu trabalhadores que chegavam ao local e outros que dormiam no prédio, ao total vinte ficaram feridos e um veio a óbito dias depois da tragédia. Infelizmente, esse não é um caso único, ao longo dos últimos anos são recorrentes esses episódios. E, apesar de haver certa comoção momentânea em razão da perda das fantasias e/ou alegorias do desfile, pouco se fala sobre os trabalhadores que produzem as condições para que a festa se realize.
Sabemos que setor de eventos atua majoritariamente por meio de contratos informais, terceirizados e/ou intermitentes, resultando em um conjunto de trabalhadores à margem do mercado formal de trabalho e sujeito à precarização de sua força de trabalho. Neste blog, já foram publicados outros artigos que descrevem a precariedade do trabalho no setor de eventos, tais como o de Silva e Corrêa (2023), Silva, Bantim e Costa (2021) e Teberga (2020). Além desses textos, o grupo de pesquisa Labor Movens também realizou uma discussão virtual sobre o documentário “Cordeiros”, dirigido por Amaranta Cesar e Ana Rosa Marques (2008), que descreve a exploração do trabalho daqueles que seguram a corda que divide as categorias de foliões, “camarote” e “pipoca”, no carnaval de Salvador.
Neste artigo, buscamos compreender a precariedade do trabalho em um evento em particular, o carnaval do Rio de Janeiro, que é hoje um dos principais megaeventos do calendário internacional, envolvendo números grandiosos na quantidade de turistas, na receita gerada, na geração de emprego formal e postos de trabalho informal, além dos investimentos públicos e privados. E, mais especificamente, buscamos analisar e dar visibilidade às condições precárias de trabalho em que estão submetidas as costureiras de fantasias de escolas de samba. Trata-se de um recorte de pesquisa de Iniciação Científica desenvolvida no Centro de Excelência em Turismo da Universidade de Brasília, entre 2023 e 2024, pela discente Edilene Vilas Bôas, sob orientação da professora Angela Teberga, que, em breve, será publicada como artigo acadêmico.
Na década de 1920, as escolas surgiram como agremiações carnavalescas, a partir dos famosos cordões ou blocos e os desfiles festivos, sendo o centro articulador da formação das escolas de samba no Rio de Janeiro. Com o surgimento das escolas, no início dos anos 30, o desfile já se configurava uma competição que definiria uma forma artística própria. Ao longo do século XX, o desfile propiciou à cidade um canal de expressão e mediação de processos sociológicos importantes, tais como a expansão da cidade rumo aos subúrbios e à periferia, a expansão das camadas médias e populares e sua interação, além da importância crescente do jogo do bicho junto às camadas populares (Cavalcanti, 2002).
No carnaval, há uma “troca de papeis”, os excluídos surgem no meio da cena como nobres. Alguns exemplos são: o mestre sala e a porta bandeira que desfilam como os reis do cortejo, a bateria que é a grande orquestra e as passistas as princesas do festejo. É no desfile que a escola conta, através do seu samba de enredo e sua evolução, uma história com temática, heróis, vilões, reis, princesas e alguns finais felizes, culminando no cortejo que é a plenitude do rito e envolve toda a comunidade da escola (Cavalcanti, 2002). O desfile na Marquês de Sapucaí, mais conhecida como Sambódromo, é o grande palco das ilusões.
Convém notar que essa “grande fantasia” repercute, ano após ano, na movimentação de cifras gigantescas. No carnaval carioca de 2024, o saldo foi de R$ 5 bilhões, 8 milhões de pessoas e R$ 500 milhões em geração de impostos, sendo criados 50 mil postos de trabalho diretos, destes 15 mil autônomos e 13 mil ambulantes.
De fato, são muitos trabalhadores envolvidos para a realização desse megaevento, tais como ambulantes, músicos, garis, roadies e equipe técnica das escolas de samba. Aqui, daremos destaque ao trabalho das costureiras das fantasias de carnaval. Para tanto, foram realizadas entrevistas com três costureiras, além da observação do ambiente de trabalho e contexto dessas trabalhadoras.
O trabalho das costureiras
Costurar é unir uma parte à outra e essa união pode resultar em vestimentas para o dia a dia, em peças exclusivas para realizar um sonho (como o vestido de noiva) e, também, transformar uma história, tal como o enredo de um samba, em fantasia.
A história da costura está alinhavada à história da sociedade, com suas mudanças tecnológicas, culturais, econômicas e políticas. A costura é tão antiga quanto à civilização humana, seus produtos se conectam às nossas vidas como uma segunda pele. A partir da Revolução Industrial, a mecanização da costura passa a gerar uma produção em larga escala, de maneira que grande parte dos trabalhadores perde sua renda como costureiros artesanais e migram para as fábricas da indústria têxtil, com baixos salários e jornadas de trabalho, que podiam ultrapassar as 14 horas diárias.
Após a Segunda Guerra Mundial, inicia-se grande expansão do processo produtivo têxtil, através da confecção de roupas prêt-à-porter (tradução literal: pronto para vestir), com moldes e tamanhos padronizados, o que gera uma profunda intensificação da exploração do trabalho, apesar de certa democratização do acesso do mercado consumidor.
Historicamente, a produção têxtil - artesanal ou fabril - foi atribuída às mulheres, em especial na Europa e na América Latina. De acordo com Maleronka (2007), as alternativas de subsistência, no início do século XIX, eram bastante restritas e juntamente com a pobreza empurravam desde a infância as meninas à costura, que faz parte de um grupo de afazeres ligados ao cotidiano doméstico. Bordin (2019) ressalta que a costureira aparece sempre de forma superficial e pouco ou nada valorizada nos estudos sobre o ofício, geralmente uma categoria com baixa escolaridade e baixos salários.
Conforme a plataforma Data Sebrae (2021), foram registrados 12.425 empregados formais na indústria da transformação, que engloba cinco atividades econômicas referentes às atividades de confecção de peças de vestuário e afins, na cidade do Rio de Janeiro e região metropolitana. A renda média deste grupo foi de R$ 2.235,00, sendo 77% do sexo feminino e 70% negras ou indígenas.

De acordo com Rosa e Cunha (2022), o ofício de costureira não possui um procedimento formal escrito, pois apesar de ser uma profissão reconhecida pelo Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), ainda não é regulamentada. O Projeto de Lei n° 7806/2014, apresentado com a intenção de regulamentar a profissão de costureira em todo o território nacional, ainda não foi aprovado. Não obstante, segundo a Classificação Brasileira das Ocupações (CBO), três tipos de costureiras são reconhecidos: de ateliê, de reformas e de fábrica. Adicionalmente, Bordin (2019) acrescenta a costureira de facção, aquela que monta as peças em série para a indústria de confecção.
Segundo Rosa e Cunha (2022), esta última, a costura de facção, é a modalidade mais precarizada das quatro descritas acima, por operar, na maior parte das vezes, através da terceirização. Não é raro recebermos notícias que mostram a precariedade nessas fábricas, sendo a modalidade que mais recebe autuações fiscais do Ministério do Trabalho. A Repórter Brasil, por exemplo, denuncia periodicamente casos de trabalho escravo contemporâneo na indústria da moda, incluindo lojas populares e grifes luxuosas. Isso ocorre porque as marcas, ao invés de produzirem suas peças, contratam redes de fornecedores terceirizados, para que não assumam os custos com os salários e direitos trabalhistas.
No caso específico da costura de fantasias para o carnaval, não é possível fazer o recorte dos dados primários. De toda forma, o que se observa são trabalhos desvalorizados e atribuídos às mulheres que labutam o ano inteiro, em jornadas extenuantes, geralmente na informalidade e em ambientes de trabalho com alta insalubridade.
Ouvindo as costureiras do Carnaval do Rio de Janeiro
Como dissemos anteriormente, foram realizadas três entrevistas com costureiras que trabalham para o carnaval do Rio de Janeiro. Na realização das entrevistas, pudemos perceber a vontade das trabalhadoras da costura de contar suas histórias mesclada com o receio de serem identificadas. Por isso, as entrevistadas foram identificadas com números para proteger seu anonimato.
Entrevistada | Idade | Raça | Tempo de ofício | Renda média mensal |
1 | 58 anos | Preta | + 30 anos | R$ 10.000,00 (conforme demanda) |
2 | 69 anos | Parda | + 53 anos | R$ 2.000,00 |
3 | 38 anos | Parda | 5 anos | R$ 2.000,00 |
Alguns pontos merecem atenção para uma compreensão das realidades dessas trabalhadoras. Resumimos e organizamos suas respostas em três blocos de análise: 1) Características gerais das entrevistadas; 2) Condições de trabalho (contrato e jornadas) e 3) Saúde e segurança no trabalho.
Em relação às características gerais das entrevistadas, todas as entrevistadas são mulheres, acima dos 38 anos. Chama a atenção o fato de uma delas ter 69 anos de idade e ter mais de 53 anos de ofício, o que significa dizer que trabalha desde os 16 anos de idade. A escolaridade é variada: a entrevistada 1 cursou Ensino Médio; a 2, o Ensino Fundamental; e a 3, o Ensino Superior. Declaram ter iniciado na costura com o objetivo de complementar renda ou por desemprego na área de formação. Afirmam gostar do carnaval e que possuem em seu imaginário a magia da festa, além de sentir orgulho de verem suas peças sendo utilizadas nos desfiles.
A respeito das condições de trabalho, verificamos que as jornadas de trabalho das entrevistadas chegam a ultrapassar as 12 horas diárias, sem remuneração extra e são definidas pela líder da equipe, inclusive a pausa para o almoço. É comum trabalharem nos finais de semana, pois recebem por peça/produto realizado e precisam cumprir as metas de produção. A entrevistada 2 sente orgulho de ser reconhecida como “motorista de fuga”, pela agilidade com que desempenha suas atividades, chegando a fechar 800 camisetas em um dia, ou seja, uma a cada 1' 35".
De acordo com Cavalcanti (1994), nos "barracões" (grande galpão onde são produzidos as fantasias, os adereços e as alegorias das escolas de samba) há uma predominância da informalidade nas relações de trabalho, sem cumprimento dos direitos básicos e com acordos "de boca", sendo a atividade da costura tratada como uma atividade de menor importância. De um modo geral, as equipes são contratadas por empreitadas, prevalecendo o contrato com a chefe da equipe, geralmente um Microempreendedor Individual (MEI), que leva sua equipe para o barracão para a confecção das fantasias. A contratação é tácita, não havendo nenhum instrumento de proteção aos direitos e garantia de remuneração pelos serviços prestados.
Em relação à saúde e segurança no trabalho, todas as entrevistadas realizam esforços repetitivos e permanecem muitas horas sentadas executando os mesmos movimentos. Ao mesmo tempo, revelam muita pouca possibilidade de criação, pois recebem os protótipos que precisam ser feitos à risca conforme definido pelo carnavalesco. Indicam alta carga de pressão e estresse emocional conforme se aproxima a data dos desfiles e as entregas dos produtos. As entrevistadas dizem não realizarem pausas de descanso e/ou os exercícios para prevenção de DORT (Distúrbio Osteomuscular Relacionado ao Trabalho)/LER (Lesão por Esforço Repetitivo). Elas também declaram ter ou ter tido problemas de saúde relacionadas ao ofício: dores osteomusculares, problemas de visão, labirintite e cistite.

Segundo Pereira e Heinski (2021), devido à especificidade das tarefas do ramo têxtil quanto à repetitividade e velocidade de produção, são comuns os sintomas de desconforto físico e dores contínuas, como DORT/LER, diminuindo a produtividade do trabalhador e gerando insatisfação. As principais queixas são os problemas osteomusculares, que geram além das dores altos níveis de estresse com impacto na saúde mental. Os autores explicam, ainda, que a indústria têxtil brasileira está na quinta posição no ranking de afastamentos por essas patologias.
Durante as visitas aos locais de trabalho, observou-se: desconforto térmico com temperatura de 40º C e sem ventilação, grande acúmulo de resíduos como pó de serra, isopor, poeira, acetatos, fuligem, além dos cheiros fortes de cola, solvente, tintas e sprays, mobiliário sem ergonomia, ruído constante de máquinas e equipamentos. Observamos ainda que a água do bebedouro estava quente, havia um único banheiro para mais de 50 trabalhadores e não existia um espaço destinado para as refeições e pausas na jornada.
Apesar das condições desfavoráveis apresentadas acima, o retorno ao mesmo trabalho, ano após ano, demonstra aquilo que é comum no capitalismo: a impossibilidade de escolha. Como o trabalhador detém apenas sua força de trabalho para vender, há uma dependência real do trabalhador ao trabalho como única estratégia de subsistência, tal como exemplificada na fala da entrevistada 2:
Uma parceira de trabalho, ao final de cada período de trabalho com as fantasias, declarava: 'Eu nunca mais faço carnaval, isso não é trabalho de gente'. Mas, assim que reiniciavam as contratações para o próximo carnaval, dizia: 'Fazer o quê, né? Se a gente não fizer carnaval vai fazer o quê? Vamos ficar sem trabalho? Topa pegar essa encomenda comigo?' E lá íamos nós para mais um carnaval...
Considerações Finais
A pesquisa possibilitou conhecer melhor as nuances do trabalho das costureiras no carnaval carioca e a precariedade que permeia a atividade e a rotina dessas trabalhadoras, além de desmascarar a romantização do universo da fantasia deste grande espetáculo. Outro ponto refere-se à questão da informalidade, que leva à ausência de dados sobre o setor, dificultando o acesso a informações sistematizadas que possibilitem uma análise mais adequada e fidedigna da realidade das costureiras do carnaval carioca.
Podemos identificar, na literatura e em campo, marcadores da precariedade do trabalho e uma insatisfação por parte das costureiras com suas condições de trabalho de modo geral: baixa remuneração, desvalorização da atividade, longas jornadas de trabalho, informalidade e ambiente insalubre. Isso demonstra, infelizmente, que o incêndio na fábrica de produção de fantasias no mês de fevereiro de 2025, que deixou vinte feridos e vitimou um trabalhador dias depois, não foi por um acaso. Oxalá que o "amanhã", assim como questionado no samba, seja de mais dignidade para a classe trabalhadora.
Se muito discutimos sobre a precarização das relações trabalhistas em face da globalização, é chocante perceber que no cenário das escolas de samba ainda nos deparamos com uma estrutura colonial e arcaica, repleta de incongruências, violências e fragilidades. O verniz de profissionalismo está mais do que arranhado. Restam a fuligem e a pergunta de um outro samba: “Como será o amanhã? Responda quem puder” (Bora, 2021).
Referências
BORA, L. A. “Glória a quem trabalha o ano inteiro?”. PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos em Cultura, v. 11, n. 21, p. 24-47. Disponível em https://doi.org/10.22409/pragmatizes.v11i21.49499.
BORDIN, E. Z. Ofício Costureira: Um estudo sobre educação e as posições ocupadas no mercado de trabalho da confecção de vestuário na região metropolitana de Porto Alegre. Dissertação de Mestrado em Educação. Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2019. Disponível em: http://hdl.handle.net/10183/193385.
CAVALCANTI, M. L. V. C. Carnaval Carioca: dos bastidores ao desfile. Rio de Janeiro: Funart/UFRJ, 1994.
CAVALCANTI, M. L. V. C. Os sentidos no espetáculo. Rev. Antropol., v. 45, n. 1, 2002. Disponível em https://doi.org/10.1590/S0034-77012002000100002
COSTA, F. A história da costura e a civilização. ArqBahia. Salvador (BA), 14 mar 2024. Disponível em https://arqbahia.com.br/2024/03/14/a-historia-da-costura-e-a-civilizacao/escola/resumos-de-historia/#google_vignette
DATA SEBRAE - Indicadores 2021. Disponível em:
https://datasebraeindicadores.sebrae.com.br/resources/sites/data-sebrae/data-sebrae.html#/Empregados.
MALERONKA, W. Fazer roupa virou moda. Um figurino de ocupação da mulher. São Paulo: Estação das letras e cores, 2007.
PEREIRA, J. G. HEINSKI, R. M M. O impacto das doenças DORT/LER na saúde ocupacional do profissional de costura do ramo têxtil. Revista Científica Multidisciplinar Núcleo do Conhecimento, v. 10, n. 6, p. 84-101, 2021. Disponível em: https://www.nucleodoconhecimento.com.br/administracao/costura-do-ramo
ROSA, M.; CUNHA, D. M. Ofício de costureira: desvelando normas, saberes e valores. Revista Latino-Americana de Estudos Científicos, v. 3, n. 18, 2022. Disponível em: https://periodicos.ufes.br/ipa/article/view/39144/26124
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