Marcos Luiz Filippim, Marcelo Chemin & Stephany M. Barros | UFPR - Setor Litoral
“Quem construiu Tebas, a das sete portas? Nos livros vem o nome dos reis, mas foram os reis que transportaram as pedras? [...] No dia em que ficou pronta a Muralha da China para onde foram seus pedreiros?” (Bertolt Brecht)
Este informe sintetiza resultados de pesquisa realizada em Matinhos, no litoral paranaense, tradicional destino turístico de sol e praia do Sul do Brasil, que, a exemplo de outros territórios litorâneos globais próximos a grandes centros urbanos, teve a expansão e verticalização urbana, fixação e crescimento populacional como fenômenos diretamente relacionados ao uso balneário e turístico na cidade. O objetivo consistiu em analisar o universo dos trabalhadores da construção civil e sua contribuição na trajetória do município, notadamente entre 1980 e 2000. Foram analisadas as compreensões de acolhimento no município, a mobilidade ou ascensão social, bem como as relações de pertencimento.
O trabalho, publicado originalmente na Revista Rosa dos Ventos – RRV (UCS), é fruto de esforço de pesquisa realizada por grupo do Setor Litoral da Universidade Federal do Paraná, viabilizada a partir de parceria entre o PET Litoral Social, e um projeto de Iniciação Científica da Instituição.
A pesquisa adotou abordagem qualitativa, com delineamento de estudo de caso e as técnicas utilizadas para a coleta de dados foram entrevistas semiestruturadas, caderno de campo, observação e análise de documentos. Ao total coletaram-se depoimentos de 10 trabalhadores, reunidos a partir da técnica bola de neve.
Os resultados indicam que os entrevistados, oriundos de áreas rurais e com fragilidade econômica, mencionaram dificuldade inicial na adaptação, contudo, a partir de experiências vivenciadas criaram relações de pertencimento consistentes com o lugar e experimentaram algum grau de ascensão e mobilidade social, com rotinas atreladas à dinâmica balneária.
A história de Matinhos está diretamente vinculada ao desenvolvimento do uso balneário e das práticas de turismo junto ao mar, que alteraram a feição da costa do Paraná a partir da segunda década do século XX, e mais marcadamente após a década de 1960, quando iniciou o processo de verticalização do quadro urbano (Abrahão, Cardoso, Chemin, & Filippim, 2019; Bigarella, 2009).
Figura 1. Aspecto da construção do Edifício Caiobá, ícone da fase inicial de adensamento e verticalização, inaugurada na transição entre as décadas de 1950 e 1960.
Fonte: Acervo da Secretaria Municipal de Cultura da Prefeitura de Matinhos.
Os sujeitos da pesquisa são oriundos de pequenos municípios da região norte e nordeste do Paraná. Em maior proporção eram localidades com população inferior a vinte mil habitantes e cuja economia e sociedade estavam ligadas ao campo e às ruralidades. Assim, mesmo os sujeitos da pesquisa que residiam nos núcleos urbanos tiveram uma trajetória estreitamente vinculada à vivência e entorno cultural característicos do meio rural, frequentemente em condições de fragilidade econômica e social. Nesse contexto, para um dos sujeitos da pesquisa, a relação com a construção civil surgiu ainda na roça quando o mesmo, enquanto realizava o trabalho, traçava mentalmente edificações imaginárias, qualificando a profissão como um sonho. Como forma de transmutar essa realidade e em busca de oportunidades deslocaram-se de suas cidades de origem e se transferiram para o litoral do Paraná, mais especificamente para Matinhos, onde construíram sua vida, amealharam algum patrimônio e permaneciam residindo à época da recolha dos depoimentos.
Esses trabalhadores vivenciaram algum grau de ascensão ou mobilidade social à medida em que encontraram um cenário de “construção” de uma cidade fortemente marcada pelo incremento da visitação turística e consequente necessidade de ampliação das edificações para o alojamento de novos moradores e veranistas. Isso pode ter contribuído para o “efeito imitação”, ou seja, a vinda de outras pessoas em busca de oportunidades semelhantes. A maioria dos informantes transferiu-se para Matinhos motivados pela possibilidade de ascensão que observava nos parentes e amigos que emigraram antes para o litoral e divulgaram as vantagens da transferência em suas áreas de origem.
Embora a adaptação inicial tenha sido difícil, como mencionado por parte dos entrevistados em seus depoimentos, restaram evidente as relações de pertencimento consistentes que esses migrantes construíram com o lugar a partir da sedentarização no território.
O debate proposto por Lozato-Giotard (1990), Pearce (2003) e Urry (2001) mostrou-se compatível à interpretação de Matinhos como um dos destinos brasileiros que retrata fatores presentes em tantos outros assentamentos balneários globais. Isto porque as dinâmicas relacionadas com o turismo de sol e praia lhe definiram a origem e forma, impulsionaram a expansão urbana, o crescimento populacional e conferem desde então suporte à economia, com geração de divisas, renda e trabalho. Nesse tipo de território, em que o turismo atua como vetor de configuração, o ambiente revela que a formação da cidade e de destino turístico ocorreu de modo simultâneo, imbricada, sem fronteiras e distinções evidentes. O tecido urbano conforma-se entremeado por uma rede econômica e conjunto de operações de mercado cuja parcela dos atores, bens e serviços produzidos, estão voltadas para quem não possui domicílio no local. A pesquisa demonstrou a visão de trabalhadores que atuaram na formação desse tecido, migrantes que fixaram moradia. Passaram a constituir o urbano, nas suas complexidades culturais, econômicas, políticas e estabelecer relações simbólicas e laços com o lugar.
Augé (1994) afirma que, no sentido antropológico, lugares são identitários, relacionais e históricos. Os depoimentos revelam que estes trabalhadores, que saíram dos “seus lugares” portando significados e sentimentos rumo a novas e desconhecidas experiências, levaram consigo costumes e tradições que vivenciavam no lugar de origem. A adaptação foi considerada penosa em virtude da ruptura de relações com familiares e amigos que permaneceram nos antigos lares, simultânea à construção de novos vínculos, apontados como inicialmente frágeis, isto tudo imerso num ambiente com outra cultura, geografia, relações de poder, enfim dinâmicas territoriais.
Assim, o processo de adaptação não elimina o quadro de referência cultural dos trabalhadores e, nesse contexto, ocorre um intrincado processo de reelaboração da identidade a partir de novas experiências e formas de interação social. A transferência implicou, de maneira convergente, a ressignificação do sentimento de pertença e da relação que os sujeitos da pesquisa estabeleceram com o lugar. A ideia de pertencimento está significativamente inserida no social, na vida coletiva e também individual do sujeito, criando interesses que os direcionam.
Nesse sentido, é possível identificar um processo de reterritorialização, nos termos concebidos por Haesbaert (2008), para quem uma das formas de interpretar o território é a partir de seu valor simbólico, como “abrigo”, “lar” e “segurança afetiva”. Com as experiências nos canteiros de obra, nos alojamentos, na praia ou em outros espaços da cidade como igrejas, bares, praças, entre outros; o estabelecimento de relações com colegas de trabalho que compartilhavam de histórias semelhantes ou com outros atores sociais; e com o cotidiano vivido no lugar passaram a sentir-se acolhidos e estabeleceram vínculo afetivo com Matinhos.
Em razão do ofício da construção civil ser considerado árduo, o que dificulta o desempenho em idade mais avançada, esses trabalhadores passaram a assumir outras ocupações como, por exemplo, de zeladores em condomínios de segunda residência, componente imobiliário bastante comum da planta balneária local (Abrahão & Tomazzoni, 2018), edificações estas que em alguns dos casos trabalharam no próprio canteiro de obras em anos anteriores. Mesmo em novas funções, não abandonaram o sentimento de orgulho por serem protagonistas no processo de verticalização urbana. Trata-se, portanto, de um novo quadro e relação com o lugar que, no entanto, não é destituído de história e espessura de significado, inequivocamente marcadas pela trajetória dos indivíduos que, a um só tempo, se transformam pela nova ambiência de vida e são instituintes da conformação desse novo lugar.
Nesse processo, a construção da cidade balneária para a prática do turismo assume centralidade na vida dos indivíduos pesquisados, não apenas por ter constituído seu universo laboral e vetor de sua migração, mas também por lhes atribuir o estatuto de integrantes da comunidade receptora, em larga medida principais elementos de mediação entre turistas e o lugar, dado que muitos assumiram ocupações relacionadas ao acolhimento da visitação.
A transição da roça para a praia atendeu expectativas de um novo patamar social, indispensável para a formação de suas identidades e de suas realizações. Além de serem protagonistas na conformação da cidade, construíram também suas próprias vidas no lugar que escolheram. Com a efetivação desse processo de reterritorialização, passam a se sentir fortemente ligados a Matinhos, como atesta a emblemática e contundente afirmação de um dos entrevistados, que diz ter fundido a si próprio com o lugar:
“. . . eu não sei se eu sou daqui da cidade, ou se a cidade é minha, nós nos fundimos um ao outro”,
o que robustece a ideia de pertencimento e sugere traços da relação passional com a cidade escolhida para residir e desenvolver relações sociais e de trabalho, em uma comunidade fortemente marcada pela sazonalidade da visitação turística, na qual assumem diferentes funções e atividades relacionadas a esse contexto.
Assim, o compartilhamento de experiências e o próprio “fazer” da vida carrega o espaço vivido de sentido e marcas da trajetória, transmutando-o em lugar com espessura de significado e referência emocional. No caso em exame, pode-se arguir que o homem, antes forjado nas lides do campo, passa a amalgamar sua identidade ao contexto de vida em um destino turístico de sol e praia, que ajudou a compor com seu trabalho na construção civil e do qual também figura como um dos atores sociais necessariamente presentes, vez que não há cidade, verticalização e mesmo balnearização sem a construção civil e seus trabalhadores.
As inquietações que animaram este trabalho decorrem de um esforço por dimensionar a contribuição dos trabalhadores da construção civil, até aqui invisibilizados, no contexto da edificação da cidade-balneário de Caiobá, em Matinhos, que nasceu e foi dinamizada pela balnearização, ilustrando uma tendência global de urbanização não só impulsionada como modelada pelo turismo. A verticalização do quadro urbano, notadamente em Caiobá, fenômeno comum em destinos turísticos de sol e praia, representou uma oportunidade de inserção no mercado de trabalho do setor da construção civil para um expressivo contingente de trabalhadores, oriundos das regiões norte e nordeste do estado do Paraná.
A análise do processo de territorialização dos trabalhadores que, inobstante não se despojarem das referências de sua trajetória, ressignificam suas vidas no contexto da cidade-balneário, que não apenas ajudaram a edificar, mas da qual também são parte do próprio cenário deu azo ao esforço de pesquisa. Além disso, a partir de sua fixação no lugar, passam a compor a comunidade receptora e frequentemente atuam como mediadores da relação de turistas e segundos residentes com o território.
A topofilia, constructo teórico desenvolvido por Tuan (1983) para qualificar a afeição em relação ao lugar aparece em tons vigorosos entre os sujeitos da pesquisa, ao ponto de um deles verbalizar a sensação de que houve uma fusão entre si próprio e a cidade, numa surpreendente comunhão com o território.
REFERÊNCIAS
Abrahão, C. M. S., Cardoso, B. C., Chemin, M., & Filippim, M. L. (2019). Segundas residências em destinos turísticos litorâneos: Um estudo sobre impactos socioeconômicos com atores estratégicos do balneário de Caiobá/Matinhos, litoral do Paraná (Brasil). TURyDES, 12(26). https://dialnet.unirioja.es/servlet/articulo?codigo=7761353
Abrahão, C. S., & Tomazzoni, E. L. (2018). Turismo de Segundas Residências no litoral sul do Brasil: Uma discussão sobre seu dimensionamento e relevância para a atividade turística contemporânea. Revista Brasileira de Pesquisa em Turismo, 12(1), 80-101 https://rbtur.org/rbtur/article/view/1328
Augé, M. (1994). Não-lugares: Introdução a uma antropologia da supermodernidade. Campinas: Papirus.
Bigarella, J. J. (2009). Matinho: Homem e terra - reminiscências... Curitiba: Fundação Cultural de Curitiba.
Haesbaert, R. (2008). Dos múltiplos territórios à multiterritorialidade. In Á. L. Heidrich, C. L. Z. Pires, B. P. Costa, & V. Ueda (Org.), A emergência da multiterritorialidade: A ressignificação da relação do humano com o espaço (pp. 19-36). Porto Alegre: Editora da ULBRA.
Lozato-Giotard, J. P. (1990). Geografía del turismo: Del espacio contemplado al espacio consumido. Barcelona: Masson.
Pearce, D. G. (2003). Geografia do turismo: Fluxos e regiões no mercado de viagens. São Paulo: Aleph.
Tuan, Y. (1983). Espaço e lugar: A perspectiva da experiência. São Paulo: DIFEL.
Urry, J. (2001). O olhar do turista - lazer e viagens nas sociedades contemporâneas. São Paulo: Studio Nobel, Sesc.
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