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Tire seu sorriso do caminho que eu quero pass(e)ar com a minha cor: turismo e a questão racial no Brasil

Thiago Sebastiano de Melo | UnB, Labor Movens, Reescrita



O texto que ora se apresenta é a junção de uma série de 5 publicações entre os anos de 2019 e 2020 na Coluna de Opinião do blog do projeto de Multiplicadores de Vigilância em Saúde do/a Trabalhador/a (MultiVisat) da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Para esta publicação no blog do grupo Labor Movens – Condições de Trabalho no Turismo, que foi anteriormente publicada no site da rede AlbaSud, foram realizadas pequenas alterações, sobretudo incluindo título e fonte das imagens.


Compreendendo, com Clóvis Moura, que o Brasil vive sob a égide de um ethos colonial-escravagista (MOURA, 2020), o empreendimento em tela tem o objetivo de se somar ao que o sociólogo Florestan Fernandes (2017) indicava como a necessidade de expandir as reflexões sobre questões raciais para o conjunto da população, reafirmando seu caráter socialista, e expondo de forma clara, sem subterfúgios, seus posicionamentos como condição da construção de uma efetiva democracia. Para Fernandes


Os ativistas negros não devem, portanto, esconder-se dentro de seus grupinhos. Eles precisam proclamar quais são os valores que contrapõem aos mitos raciais das classes dominantes e a qualidade igualitária imperativa desses valores para todos os que vendem a força de trabalho como mercadoria. E precisam, acima de tudo, despertar a consciência do caráter suprarracial da solidariedade proletária, porque, no fundo, a superexploração do negro é a condição tanto da desvalorização do trabalho operário em geral quanto do fortalecimento do despotismo das classes burguesas (FERNANDES, 2017, p. 47).

Tendo a Coluna Opinião o compromisso com a expansão do diálogo com a classe trabalhadora, os textos não têm uma forma-linguagem comumente adotada na academia.


Por fim, a aproximação entre Turismo e a Saúde, notadamente à Saúde do/a Trabalhador/a me parece fundamental e tem despontado como importante agenda de pesquisa, tendo sido contemplada em ações do Ministério da Saúde e da Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq, importante órgão de fomento da ciência no Brasil.



I

Permita que eu me apresente. Sou um negro-paulistano-sambista-corinthiano-da periferia. Acadêmico de ofício. Boêmio de coração. Venho da contestação. Sou ponto fora da curva. Atento aos convites e às provocações.

Responder ao convite para escrever neste espaço não deixaria de refletir isso. Por isso busquei provocações e convites já feitos nas Colunas publicadas que me tocam. Certamente a determinação, sensibilidade e precisão expressas no conjunto de textos costura a ArteVida enunciada por Chaveiro (22/03/2019). Me proponho a somar com essa postura: traçar um bailado firme e belo que nos agrupe para superar o Medo Global, igualmente denunciado por Chaveiro (15/05/2019).

Minha pista de dança é o turismo. Não restrito à atividade econômica, mas como campo de saber, que chamarei de campo, em diálogo com Diego Souza (14/01/2019). Inclusive, aceito o convite/provocação que faz: “Viajar para além dos limites burgueses é tarefa difícil, mas possível e necessária”. Aqui o colunista, talvez sem querer, nos diz sobre a força que o turismo tem na sociedade contemporânea. Como narrativa, que impõe a pujança de seus termos peculiares no diálogo cotidiano, como analisa a sociosemiótica, por exemplo, e também como análise da dificuldade de compreender esse complexo fenômeno social numa mirada teleológica (para além das lentes capitalistas).

No concurso que me efetivou como docente no curso de turismo na Universidade Federal de Pelotas eu não era o único negro. Éramos três. Apenas eu me inscrevi pelas cotas. As conversas sobre as cotas durante o certame mostraram uma aversão por parte de uma das pessoas que, a partir das características fenotípicas, pode facilmente ser considerada negra (apesar de não saber se assim se entende). Cegueira em tempos de idiocracia, como bem provocou Amorin (28/05/2019).

Com isso martelando na memória, fui lindamente surpreendido no primeiro contato com as turmas do curso por uma demanda de enegrecimento do turismo. É como se tivessem ouvido o alerta de Maria de Oliveira (13/05/2019): “É absolutamente necessário que sejam criados espaços de rebeldia contra essa discriminação e isolamento que o racismo produz. É preciso ser extirpado de cada gesto, de cada olhar e de cada pensar. É preciso dar vez e voz a esse imenso número de brasileiros excluídos e invisibilizados”.

Se nem quem pesquisa e se propõe a ocupar a docência em turismo está atento ao racismo estruturante, como venceremos o medo de mudanças? Justamente criando e ocupando espaços como este da Coluna de Opinião vinculado a uma importante entidade de pesquisa.

O racismo tem sido oportuna e precisamente abordado por aqui. Luizinho aproxima duas questões essenciais e indissociáveis no tratamento do tema: Adoecimento mental (22/05/2019) e o racismo como limite para a organização da classe trabalhadora (05/07/2019). Gil Sevalho (29/04/2019) alerta para o fato de que uma práxis emancipatória exige uma teoria emancipatória e essa pede referências emancipatórias. Já Oliveira (13/05/2019) poeticamente convida: não deixe o samba morrer, não deixe o samba acabar. O samba é a efetivação e simbolização da potência negra, ensina!

É com samba que volto ao turismo: os fascinantes versos de Guilherme de Brito musicados por Nelson Cavaquinho são a metáfora poeticamente perfeita para abrir alas para o estandarte antirracista no turismo. O turismo só tem olhado para a saúde como nicho de mercado. A saúde do trabalhador tem sido sistematicamente relegada ao silêncio neste campo, ainda que uma leitura atenta revele que a cadeia produtiva do turismo compareça nas abordagens dentro do campo da saúde do trabalhador, como já apontei num texto para o Boletim.

Queremos passear com nossa cor! Passear pelas diferentes paisagens Brasil afora. Passear pelas diferentes entidades e ocupações. Passear pelos caminhos teóricos, imprimindo passos de contestação, ensaiando e ensinando o passinho da periferia que se constrói na articulação que potencializa e ecoa o hino que diz que “negro é a raiz da liberdade”!

A teorização turística emancipatória se nutre da literatura e da arte periférica, contra hegemônica. Os corpos e as identidades que cada dia gritam mais alto seu desejo de passear livremente para onde bem entenderem, conhecem bem a realidade cantada pelos Racionais MC’s: cores e valores estão intimamente relacionados e são, em seu conjunto, passaporte que permite a passagem de uma minoria e nega a da maioria.

As viagens são parte da cadeia produtiva do turismo. O turismo componente central na reorganização produtiva do capitalismo. A hiperprecarização do trabalho se aprofunda nessa sociedade de serviços. Essa hiperprecarização tem cor. O racismo estrutural é constituinte da cadeia produtiva do turismo. Está na hora do campo refletir sobre isso. É para um passeio pelas diferentes dimensões e escalas do fenômeno turístico e suas contradições, comprometido com as transformações sociais e a emancipação, que lhe convido. A questão racial é a lente com a qual, inicialmente, fotografarei diferentes aspectos destas contradições.

Vamos pass(e)ar com nossa cor?!

Oh abre alas, que eu quero passar!

 

II

Elevador é quase um templo

Exemplo pra minar teu sono

Sai desse compromisso

Não vai no de serviço

Se o social tem dono, não vai...

(Jorge Aragão)

Embalado pelo samba do acolhimento, pelo samba da solidariedade, do humanismo que não se reverte em narrativa hipócrita, escuto gritar a metáfora do poeta do samba, Jorge Aragão. Quando a subida pelo elevador de serviços é a única condição da sobrevivência ela mina a organização coletiva, claro! Por isso é um projeto de sociedade. Mas e quando subir pelo elevador (de serviço) não é a condição da reprodução imediata, antes, é, ou deveria ser, momento de lazer?

O psicanalista e professor da Universidade de São Paulo, Christian Dunker, escreveu sobre como a educação historicamente esteve empenhada em construir geografias imaginárias que se revertem em segregações reais. Estendo à ciência. Quem a de desconsiderar o impacto das teorias raciais que imputavam a superioridade de um determinado fenótipo/estereótipo racial sobre os demais? Como desconsiderar a brutalidade, nunca amplamente discutida, com a qual foram interiorizados os silenciamentos das teorias de uma miscigenação harmoniosa e benéfica no Brasil? Como e por que não admitir que esses elementos constitutivos de geografias imaginárias que ganharam, inclusive, respaldo de políticas estatais de embranquecimento da população brasileira, consagram segregações reais também na dimensão do lazer, entretenimento, cultura, esporte, mobilidade, gastronomia, enfim, da cadeia produtiva do turismo?

Se as pesquisas em turismo não querem tratar das questões derivadas da exaltação desse sujeito referencial (o estereótipo da sociedade moderna), o mercado turístico sabe muito bem o que fazer: assimila pelo viés economicista as demandas legítimas da ínfima fração da população que corresponde à pluralidade existencial (que se afastam, portanto, desse estereótipo/sujeito referencial) e que ascende social e economicamente: mulheres, população negra, indígenas, população LGBTT, pessoas com deficiência.

A simples assimilação econômica não desfaz, contudo, as segregações reais. Redimensiona as geografias do consumo, mas não a certeza de por qual elevador devem subir estas pessoas. Das recorrentes queixas de que os aeroportos viraram rodoviárias (pelo número de sujeitos ‘estanhos àquele ambiente’), passando pelo incômodo de quem frequenta os shoppings com os “rolezinhos” da periferia, chegando a conhecida cena de seguranças seguindo pessoas negras em centros de compras, a superação dos obstáculos econômicos revela duas dimensões do racismo estrutural igualmente potentes e perversas: por um lado é um definidor das geografias existenciais (onde e como cada um pode existir) e por outro é elemento de interiorização e naturalização da repulsa ao diferente que atinge com força destruidora as subjetividades.

Emicida, com um grupo de artistas, gravou um clipe chamado “iminência parda” (que pode ser visto no youtube). Uma família negra está comemorando o sucesso acadêmico da filha e saem para festejar. O filho também está indo bem na vida acadêmica e divide a felicidade da irmã. No carro de luxo, pai e mãe satisfeitos. Chegam a um restaurante. Olhares de reprovação. Risadinhas nervosas e pouco amistosas de canto de boca. Expressões de desagrado. É a única mesa com pessoas negras. Uma cliente chega a verbalizar para o garçom o descontentamento e a repulsa com a presença daquela família (lê-se nos lábios dela “esse tipo de gente”). O vídeo sobrepõe cenas da família que se diverte ilesa às expressões de desagrado com cenas nas quais aparecem se prostituindo, roubando e servindo e limpando os clientes naquele mesmo estabelecimento. Um retrato fiel dos embates (nem sempre velados) dessas novas geografias existenciais emergentes.

Nós vamos passear! E não iremos, exclusivamente, no elevador de serviço. A questão é saber até quando as pesquisas e teorias no campo de saber do turismo negarão e/ou silenciarão sobre os impactos desse modelo de sociedade, que para além de concentrar renda de um modo obsceno (na pior acepção do termo) ainda desautoriza os corpos que vencem as quase intransponíveis corridas de obstáculos que levam ao afunilamento social a redefinirem as geografias existenciais e transformar a superestrutura a partir do entendimento de que as demandas de classe e identidade são indissociáveis?

O passeio utópico, mas não idealista, pelos campos da organização popular exige uma teoria turística classista que não silencie sobre as diferentes formas de segregação e silenciamentos. A práxis emancipatória turística pode começar com a presença estranha de um corpo negro que historicamente não pertence àquele lugar, mas precisa, porque práxis, passar necessariamente pela construção de mediações teóricas que permitam romper com as geografias (nada) imaginárias e com as segregações reais.


III

Por tanto amor, por tanta emoção

A vida me fez assim /Doce ou atroz,  manso ou feroz

Eu, caçador de mim

Preso a canções /Entregue a paixões

Que nunca tiveram fim

Vou me encontrar / Longe do meu lugar

Eu, caçador de mim

(Luiz Carlos Sá / Sergio Magrão)

Os documentos nacionais e internacionais que tratam do turismo enfatizam: comprometimento com as culturas locais, respeito aos territórios e às histórias dos povos, seres humanos vistos como plenos de direitos à integralidade de sua dignidade. O Código Mundial de Ética do Turismo e o Plano Nacional de Turismo são dois bons exemplos disso no âmbito internacional e nacional, respectivamente (em que pese terem os ideais do livre mercado como pano de fundo – o que é assunto para outro momento).

Em que pese os limites estruturais para que se garanta dignidade humana ao conjunto dos seres humanos numa sociedade guiada por interesses privados e conduzida para busca do lucro máximo, poderíamos supor, caso se tratasse apenas de boa vontade e empenho pessoal, que à medida que determinados segmentos sociais alcançassem determinado patamar de consumo/acumulação, que seriam tratados como sujeitos dignos.

Todavia, esta não é a realidade num país racista e violento que nunca se esforçou para passar a limpo seu passado escravagista e ditatorial. Esse subtexto, propositalmente silenciado e por muitos negado, conforma concepções de mundo míopes – como eu, mas cujas lentes que permitem uma correção nunca são fornecidas. O resultado, segundo a repórter Eliane Brum, num texto vibrante para quem ainda se arrepia com a causa humana, é a banalidade do mal. O mal envernizado pelas ações mais cotidianas, por quem não está nos holofotes e/ou nos locais de decisões.

O que poderia se galvanizar num cenário como este? Valores humanistas? Valores religiosos? Valores científicos? Estes três eixos cruciais para a sociabilidade contemporânea se mesclam numa fusão cujos produtos têm colorações tão distintas entre si quanto seus alquimistas. Não basta a Declaração Universal dos Direitos Humanos dizer que somos todos sujeitos dignos e merecedores de tais direitos, ou que o cristianismo diga que somos feitos à imagem e semelhança do Senhor e devemos nos respeitar e amar indistintamente, ou ainda que a ciência prove a bestialidade das teorias eugenistas. Nada disso parece ser páreo para a força de narrativas que alcançam sujeitos perdidos, certos de que seu (re)encontro consigo mesmo e seu sentido existencial se constroem “em ato”, como diz Rita Kehl num insight lacaniano.

Armados com suas narrativas, que ao invés de corrigir miopias a elevam exponencialmente, como no episódio “Engenharia reversa” da série Black Mirror, multidões de sujeitos se deslocam entre as localidades (turísticas?) que são palcos de barbaridades. Hora sem qualquer afeto solidário, hora com o ímpeto de quem foi pessoalmente atingido. Poderia aqui arrolar um sem-número de episódios nos quais a vida animal foi sobreposta à vida humana, ou de comoções coletivas por vias animais, com direito a boicote, ou da displicência conveniente com que se tratam as geografias imaginárias cuja segregação real estabelece os lugares para determinados corpos. Mas quero lhes deixar apenas com a forma melhor acabada dessa miopia social. O turismo como plataforma para o pior do racismo à brasileira, como diria Silva.


Imagens da polícia coagindo jovens em shoppings


Representações do tempo colonial escravagistas para turistas


Festas com inspiração nos tempos coloniais escravagistas

Fonte: imagens do repositório do Google.


Nos shoppings, templos do turismo (seguro? Para quem?), corpos jovens negros são, mais do que na periferia, e sob os olhos justos de quem carrega os valores que alicerçam nossa sociedade, alvos da polícia. Nas fazendas de café paulista, a liberdade da população negra é apagada enquanto se fantasia para turistas a fabulosa vida da Sinhá com suas mucamas. E se está na moda ser Sinhá vez por outra, as socialites também querem, inclusive contando com a presença de importantes nomes nacionais de afirmação da cultura negra. Já que brincar de apagar a história é turístico, por que não comemorar os 15 anos sendo servida por sujeitos que precisam encenar sua dor para viver?

A pobreza é negra! Não preta: negra! Não desconheço nem desmereço o imbróglio semântico que cerca a questão. Voltarei em outro texto. Nesse momento quero frisar que direta ou indiretamente as vidas negras sangram para que o turismo siga triunfante ao posto de principal atividade econômica até o final do século. Veja o caso de um importante evento turístico:

Na Vaquejada de Serrinha, uma das mais tradicionais da Bahia, enquanto vaqueiros concorriam a prêmios de até R$ 50 mil e Anitta e Luan Santana eram as principais atrações do evento, 17 funcionários responsáveis por cuidar dos animais trabalhavam em situação análoga à escravidão. Alguns dos trabalhadores dormiam em redes no curral, mesmo lugar onde se alimentavam, ao lado das fezes dos animais.

O que nos escapa aqui são as diferentes dimensões pelas quais a existência negra é reduzida à mercadoria. O que representa a Anitta? O que representa a Bahia? Haverá chamamento nacional de boicote ao evento? As milhares de vidas negras ceifadas à luz do dia dizem que não. Estas questões, que têm força de síntese, exigem, para uma resposta que favoreça uma leitura nítida do atual estado das coisas, a aceitação de uma premissa: o turismo, ao repor os valores de troca sobre os valores de uso, opera como dispositivo de atualização da barbárie e da indignidade.

A conclusão óbvia é que em tempos de negação da verdade, do império de fake-news, de um descomprometimento ordinário com as grandes causas, de adoecimentos desdobrados dos desencontros dos sujeitos consigo mesmo, podemos atualizar a letra que epigrafa esta fosforilação: seguimos por uma estrada na qual não será absurdo olhar para dentro e atestar “eu, turista em mim!”. Chico Buarque já havia adiantado, quando quiseres dissimular “bate palma e finge que é turista”! Pois bem, assim se tem feito. Até quando?


IV

Aqui você vai para a chibata sim!

(Anúncio de um motel cujo nome não poderia ser outro: Senzala, mas que poderia ser o anúncio de emprego no condomínio da foto que fica no Morumbi, ao lado da comunidade Paraisópolis)

 

FONTE: Repositório de imagens do Google.


Obscenidades! É isso que se vê num passeio pelo atual momento social e político brasileiro. É uma trágica coincidência que o baile que ceifou nove jovens vidas carregue em seu nome uma alusão ao número do antigo partido do representante mais famoso do discurso cristo-fascista que tem atualizado a naturalização da intolerância, com torções reconhecidamente mais penosas para a juventude negra.

Foi a partir desta vontade descabida do presidente de controlar sexualidades e corpos que me vi problematizando: como alguém pode ter prazer num cenário de violência? Não estou me referindo às práticas sexuais “violentas” consentidas. Antes, defendo que a sexualidade é um campo de experimentação, sempre com consentimento. Mas, pensemos nessa propaganda de um motel que abre o texto. Sempre me pareceu óbvio que a naturalização do racismo caminha de mãos dadas com as práticas cotidianas, que se apresentam não só de modo toscamente caricato, e ainda assim vil, quando um estudante se nega a pegar uma prova da mão de uma professora negra, mas, antes, em “piadas” com as pessoas próximas, no uso daquelas expressões que conferem ao sujeito negro o lugar vexatório e desumanizado, no silenciamento das práticas racistas diárias que vemos, porém que fingimos que não vemos. E talvez algumas pessoas não vejam mesmo. Talvez estejamos anestesiados.

Elisa Lucinda cunhou o termo morumbização para sintetizar o pior tipo de sociabilidade perversa que desumaniza. Penso que por muitas razões a expressão é brilhante. E poderia facilmente ser abreviada para zumbização. Porque estão se transformando em zumbis consumistas, desumanos que consomem, de diversas formas, seres humanos.

Se o racismo institucional é o excludente de ilicitude secular que opera no Brasil desde a colonização, que autoriza barbaridades como as praticadas em Paraisópolis, a (auto)complacência com a constituição de subjetividades racistas, a poderosa banalidade do mal, é o dispositivo pelo qual se negocia o inegociável no âmbito individual e que desagua no debate coletivo.

Há uma metanarrativa, que diluída em subtextos ordinários, fazem da extraordinária violência Estatal e da intolerância, velhas conhecidas e reconhecidas por sua “necessidade”. Há quem goze com o sofrimento histórico da desumanidade.


Quarto de motel ambientado reproduzindo uma senzala, incluindo instrumentos de tortura

Fonte: Imagem do repositório do Google para busca “motel senzala”.


Talvez a estruturação da fantasia em sua performance mais potente, a sexual e desinibida, alicerçada na barbárie, seja o maior sintoma social do adoecimento coletivo que mantém concomitantemente o aumento de uma pseudomoralidade que se pretende normativa e os gastos multimilionários com uma indústria pornográfica sabidamente perversa e difusora de alguns dos piores subtextos contemporâneos.

Transar reencenando a brutalização dos corpos negros, a inferiorização de milhões de seres humanos, fazer da chibata o instrumento de contato direto com o gozo torturante liberado do racismo, é, ao mesmo tempo, obsceno e desumano. Para quem se vê tranquilo em investir e/ou usufruir de um empreendimento cujo tema é a possibilidade de reviver, prazerosamente, o sofrimento coletivo, cada chacina de jovens negros é duplamente lucrativa: reafirma a desumanização destes sujeitos ao mesmo tempo em que “cria” novas possibilidades de investimento. Como os hotéis de luxo que “imitam” favelas, não tardará aparecer a possibilidade de fazer sexo num beco com corpos pisoteados... talvez travestidos de policiais.

O baile e o motel se encontram no lazer/turismo e se fundem no racismo. Um com a participação ativa de um Estado institucionalmente racista, o outro com a inatividade, igualmente racista, deste mesmo Estado. Em outros lugares do mundo empreendimentos que fazem referência positiva aos grandes episódios de intolerância manifestos no racismo contra segmentos da sociedade foram fechados. É bem verdade que também existem empreendimentos abertos. O Brasil forjou um racismo muito peculiar, mas não é o único país a conviver em relativa harmonia com ele. A diferença é que se em outros lugares, grosso modo, o silêncio é a música que faz dançar a intolerância, aqui, cada dia mais, ecoam as vozes que legitimam, que conclamam, que elogiam a tortura, a desumanização, o racismo, o trabalho escravizado contemporâneo (e o passado escravagista).

Não parece coincidência que um sujeito que pretende comandar um país de forma tão tacanha e desumana imposte um discurso tão debilmente sexualizado. Que em nome de um cristo branco, desumanize e seja intolerante com a diversidade existencial. Que ofereça as mulheres brasileiras como atrativo (sexual) turístico.

O turismo sexual nem de longe é a face mais obscena de uma realidade social e política que se corrói diariamente. O prazer (sexual) com a morte sistemática da população negra, notadamente a juventude (o que põe em xeque nosso futuro), é a maior obscenidade deste país. Está colada com o silenciamento de toda sorte de racismo, como o etnocídio indígena. Está plasmada numa sociabilidade estruturada por uma metanarrativa que logra, inclusive, dividir quem é mais mortalmente atingido. Hoje é o funk, mas já foi o samba, o carnaval, a capoeira. Ainda são as religiões. Sempre que a população negra estrutura formas de existência que permitem resistir ao projeto genocida de país/sociedade, tais práticas são criminalizadas. Depois, ironicamente, e muitas vezes perversamente, turistificadas (leia-se mercantilizadas).

Nos são negados os direitos Constitucionais e os direitos humanos universais. Nossa vida é oferecida como mero insumo de uma sociedade zumbizada. Nossa carne é obscenamente oferecida pelo menor preço para as piores ocupações. Nos sexualizam e, assim fazendo, nos reduzem a isso.

O que indigna os moradores dessa sociedade morumbizada é que não obstante todo sofrimento e privações impostas por esse projeto de país/sociedade, seguimos ao som de nossa população negra, favelada, periférica, resistente.

 

A chama não se apagou

Nem se apagará

És luz de eterno fulgor, Candeia

O tempo que o Samba viver

O sonho não vai se acabar

E ninguém vai esquecer, Candeia

 

Onde houver uma crença

Uma gota de fé, uma roda uma aldeia

Um sorriso, um olhar

Que é um poema de fé

Sangue a correr nas veias

Um cantar à vontade

Outras coisas que a liberdade semeia

O sonho não vai se acabar, Candeia

A chama não se apagou


V

Zumbido, com suas negrices

Vem há tempo provocando discussão

Tirou um samba e cantou

Lá na casa da Dirce outro dia

Deixando muita gente de queixo no chão

E logo correu que ele havia enlouquecido

Falando de coisas que o mundo sabia

Mas ninguém queria meter a colher

O samba falava que nego tem é que brigar

Do jeito que der pra se libertar

E ter o direito de ser o que é

[Paulinho da Viola]

No primeiro texto desta pequena série de reflexões, eu disse que o samba seria o farol que iluminaria a estrada interpretativa das questões levantadas. E é o título de um samba-homenagem da sambista-militante Leci Brandão que me anunciou a ironia da situação indígena no Brasil, com a qual eu finalizo este conjunto de textos. Seu samba se chama “Pátria Mata”. Muito parecido com o slogan do governo fascista que responde pela nação, a saber “Pátria Amada”.

Ocorre que na Pátria Amada o nacionalismo é mera quimera. A Pátria, em verdade, é Armada! E, como diriam os Racionais MC’s, infelizmente “a bala não é de festim, aqui não tem duble”. Assim, segue, sem amor nenhum à Pátria e à vida, o genocídio cotidiano da população indígena e da população negra; sem uma reação das elites e com o silêncio conivente de uma classe média que, se sentindo parte de quem mata, vê morrer suas oportunidades de uma vida melhor – o verdadeiro efeito manada.

As matas, outrora efetiva Pátria indígena, hoje vão ao chão para que a boiada passe. O gado está armado e ama a pátria fascista! Com a derrubada das matas, no entanto, esvai-se a sociobiodiversidade, privatizam-se, contaminam-se e exterminam-se os bens comuns (água, ar, solo, subsolo, fauna e flora). O Brasil, Pátria da maior biodiversidade mundial, que diz ser aspirante a destino turístico ambiental, vai na contramão das políticas de conservação ambiental mundiais.

Deste matagal genocida, não saem só cachorros loucos que derrubam as matas e matam pessoas com armas, saem também boiadas que desacreditam a ciência e matam pessoas com o aparelhamento do Estado. Ao acreditarem que a Covid-19 é uma gripezinha e desconsiderarem as recomendações da Organização Mundial da Saúde, o gado, liderado talvez por um burro(?), dificulta, quando não impede, a ação do Estado. E as consequências, uma vez mais e sempre, têm etnia, espacialidade e gênero definidos – os índices de mortalidade e a desassistência estatal para as populações indígenas, quilombolas e negra são absurdamente cruéis.

É hora de ouvirmos o Zumbido, de Paulinho da Viola, e falarmos o que já sabemos, ou deveríamos saber, e exigir que o Estado aja de acordo: a Mata é nossa Pátria e seus povos são nossa prata da casa, nosso bem maior – cosmogonias que criam pontes teleológicas (de um futuro-presente) para um novo mundo parametrizado pela valorização da vida humana.

É hora de nos ouvirmos e nos vermos como Zumbi

Eu quero ver

Quando Zumbi chegar

O que vai acontecer

Zumbi é senhor das guerras

É senhor das demandas

Quando Zumbi chega

É Zumbi é quem manda

As demandas sendo nossas, temos que dizer que chega de desmatar para o gado! É chegado o momento de, tal qual a Coalizão Negra por Direitos, nos unirmos e exigirmos que nossas vidas sejam respeitadas e nossos bens comuns conservados, não só ao sabor da especulação financeira e turística! Nossas vidas e nossos territórios não são recursos turísticos e/ou econômicos.

Se a diminuição do fluxo de passageiros em terminais aéreo e rodoviários, que dá indícios de se prolongar por incompetência e perversão governamental, preocupa a cadeia produtiva do turismo, esta deveria estar preocupada, e há muito mais tempo e de forma muito mais contundente, com uma Pátria que Mata, porque #ComRacismoNãoHáDemocracia e sem democracia (popular, não esse arremedo neoliberal que temos) falar em turismo é uma viagem para contar corpos!



REFERÊNCIAS

Moura, C. Quilombos: resistência ao escravismo. São Paulo: Expressão Popular-Andes-SN, 2020.

Fernandes, F.. Significado do protesto negro. São Paulo: Expressão Popular (co-edição PerseuAbramo), 2017.

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