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"Supostamente a gente é voluntário": entrevista com um guarda-vidas catarinense

Atualizado: 28 de nov. de 2021

Cecília Ulisses | Mestra em Turismo/UFPR



O estado de Santa Catarina se destaca em relação ao número de turistas internacionais nas viagens de lazer ao Brasil, com 4 das 10 cidades mais visitadas, conforme dados do Ministério do Turismo em relação ao ano de 2018. Os dados também informam que a principal motivação desses turistas são as práticas associadas ao turismo de sol e praia. Nesse contexto, a atuação dos guarda-vidas é uma atividade de extrema relevância para garantir a segurança dos banhistas – turistas ou não.


A profissão de guarda-vidas, no entanto, não é regulamentada, tampouco a forma de contratação. Em Santa Catarina, esta se dá por meio de termo de adesão ao serviço voluntário do corpo de bombeiros do estado. A lei do voluntariado garante que o exercício de atividades assim caracterizadas não configure vínculo empregatício. Assim, os/as guarda-vidas de Santa Catarina não são, em termos jurídicos, entendidos como empregados. A realidade da atividade exercida por eles/as, porém, mostra um cenário diferente.


A entrevista com um guarda-vidas catarinense foi realizada no dia 18 de dezembro de 2020, por chamada de vídeo, e transcrita para publicação neste blog. Por pedido do entrevistado, seu nome não foi identificado.


Crédito: Arquivo Engeplus



Você poderia falar um pouco sobre a história do salvamento aquático em Santa Catarina e no Brasil e a diferença entre guarda-vidas civil e guarda-vidas militar?

Em Santa Catarina, o salvamento aquático inicia em 1962 em Balneário Camboriú com uma brigada da Polícia Militar. Ao longo dos anos, com o aumento das demandas das praias, passa a ser coordenado pelos bombeiros que colocavam os bombeiros militares na praia, também chamados de guarda-vidas militares. Mais tarde começam a ser contratados cidadãos que não fazem parte do corpo de bombeiros, esse são chamados de guarda-vidas civis. Os civis, em primeiro momento, foram contratados como voluntários e realmente era um trabalho voluntário, tinha um valor simbólico para os custos do dia. Só que a partir de 2002, começam a ser contratados mais e mais guarda-vidas civis, que na época ainda eram salva-vidas civis. E aí, chega o momento que são mais guarda-vidas civis do que militares, então inverte a lógica. Agora a gente se encontra nesse momento do “ainda não” e do “não mais”: a gente ainda não é trabalhador, mas também não somos mais voluntários porque somos cobrados como trabalhadores, temos todas as exigências ali, todas as características do trabalho, mas ao mesmo tempo nenhum direito. Com isso, vêm acontecendo tensões, principalmente de 2013 para cá. E isso não só em Santa Catarina. Por exemplo, no Paraná, alguns guarda-vidas fizeram reuniões com os comandantes dos bombeiros de lá, para conseguir algumas melhorias. Na Bahia também, agora, eles vão fazer uma assembleia geral no dia 21, na segunda-feira, para conversar sobre as condições de trabalho. E aí, fica muito nessa balança: onde tem recursos humanos, falta equipamento; onde tem equipamentos, falta em recursos humanos. Aqui, a gente tem todo o amparo do corpo de bombeiros, mas não somos contratados. E mesmo assim, não é perfeito, né? Tem postos em que se trabalha sem banheiro, sem água potável, sem luz, e o trabalho é de 12 horas por dia.


Fale mais sobre o trabalho de guarda-vidas e a relação com o voluntariado.

Supostamente a gente é voluntário, por mais que tenha todas as características ali que garantam um vínculo empregatício. Qual é o discurso que vem nesse sentido? “Trabalha quem quer, se não quiser, não trabalha”. Mas não é isso que caracteriza um voluntário, não é? Por exemplo: a gente tem “subordinação”, porque a gente responde à um superior; a gente tem “pessoalidade”, porque não é qualquer pessoa que pode trabalhar como guarda-vidas; a gente tem “onerosidade” porque, por mais que essas diárias não caracterizem o salário, a gente recebe 150 reais por dia, e trabalhando 20 dias recebe mais ou menos dois salários e meio por mês. Esse dinheiro vai além do que é colocado como valor de ressarcimento para alimentação e transporte. Tem diversas características de vínculo empregatício, mas, ao mesmo tempo, são negados os nossos direitos e o nosso vínculo dessa forma.


Qual é a diferença entre guarda-vidas e salva-vidas? Esse é um tópico ainda polêmico, o termo “guarda-vidas” vem da tradução literal do lifeguard, do inglês com a lógica de que o trabalho vai além de salvar. Não é apenas aguardar alguma ocorrência do posto de salvamento. É realmente guardar a vida das pessoas através da prevenção. Ou seja, estamos na praia, na areia conversando com as pessoas no dia a dia explicando o que é uma corrente de retorno, o porquê que tal local é perigoso. Isso também gerou ainda mais polêmica agora durante a pandemia, porque se o nosso trabalho não é só salvar e sim guardar vidas, e a gente não tem EPI, não tem o seguro do COVID, como que a gente vai exercer esse trabalho numa praia com ventos fortes, com ondulação, que a gente tem que ser aproximar das pessoas para conversar e para orientar as pessoas. E normalmente a pessoa na praia está sem máscara. Então não basta a gente ter EPI – a gente já recebeu pouco EPI – a gente precisa de um seguro, a gente precisa de uma garantia, senão o guarda-vidas, ou o salva-vidas, dependendo do estado vão chamar de diferentes formas, precisa de uma garantia para que não se torne um vetor também. Porque a partir do momento que as praias estejam liberadas do jeito que estão e o guarda-vidas está lá trabalhando, ele vai se tornar um vetor. Normalmente tem uma imunidade maior, então provavelmente vai ser um assintomático, e provavelmente vai acabar passando para mais pessoas. Então essa também é uma preocupação, para além dos trabalhadores do salvamento aquático, também com quem usufrui da praia.


E quando acaba o verão, qual a fonte de renda dos guarda-vidas/salva-vidas?

Então, é um trabalho de bico, que não deveria ser. Dependendo das notas do curso ou da recertificação nas provas de aptidão física e uma nota que é dada pelo coordenador de praia, que é um bombeiro militar que trabalha junto aos guarda-vidas civis no verão, entra na praia mais cedo ou mais tarde. Alguns trabalham também no inverno conforme as suas classificações. Ou seja, um trabalhador que trabalha o ano inteiro, às vezes chega a trabalhar um ano e meio inteiro, direto, trabalhando dessa forma, que não tem um vínculo empregatício. Os demais que não ficam no inverno tem que correr atrás de outra forma de renda, alguns trabalham o verão e depois vão para Portugal, para trabalhar os outros seis meses na temporada de lá. Tem gente que trabalha há 15 anos nessa lógica e não contribui para o INSS nada, nesse sentido, não tem aposentadoria e trabalha com isso todo o verão e se viram no inverno. Tem outros que estão de passagem, trabalham dois anos ali, veem a precariedade e saem, então é um trabalho muito rotativo também.


De que forma os guarda-vidas estão organizados?

Lá na Argentina tem sindicatos de guarda-vidas. Foi uma luta longa para conquistar esses direitos. Aqui no Brasil, eu desconheço sindicatos de guarda-vidas. O que temos são associações. Essas associações fazem um papel de sindicato. Uma vez que não somos considerados como trabalhadores, não temos sindicatos. Inclusive até onde são concursados, trabalham na lógica de associações. Uma das associações mais fortes aqui do Brasil é a Associação Baiana de Salvamento Aquático, a ABASA. Aqui tem uma associação municipal, que é a ASVISC, que é a Associação de salvamento aquático da Ilha de Santa Catarina. Normalmente quem é o líder da associação, se for guarda-vidas, é perseguido. Já aconteceu, no caso, na construção da APSASC (Associação dos Profissionais do Salvamento Aquático de Santa Catarina), em 2013 e 2014, muitos guarda-vidas foram excluídos, entraram com uma ação contra o estado e foram, vou dizer assim, convencidos a retirarem essa ação. Caso eles não retirassem a ação, não iriam mais trabalhar como voluntários.


Quais são as principais reivindicações?

Então, giram em torno de três eixos. A primeira se dá pela regulamentação do trabalho. Isso se dá por ter uma forma de contratação digna. Como garantir a segurança na praia sem nem garantir os direitos de trabalhadores essenciais? O segundo ponto são melhores condições de serviço. Dentro disso, entra a lógica da estrutura dos postos. Não existe nada de heroico em trabalhar 12 horas na praia, sem banheiro, sem luz, sem água potável.. Dentro dessa lógica, também tem o aumento dos guarda-vidas por dia na praia. Trabalhamos em números muito baixos de guarda-vidas, esse ano no início da temporada e na pré-temporada, a ponto do nosso contrato ter um intervalo de almoço de uma hora e meia mas a gente não conseguir garantir isso pelo baixo número de efetivo por dia. Outra coisa que tem acontecido desde o ano passado para cá, em dias de chuva: dispensar até 30% da guarnição do dia e esses receber um valor inferior ao que costuma ser pago por dia trabalhado. E daí, a outra demanda, entra no seguro e garantia diante da COVID 19, e aí entra a pauta do EPI, mas mais do que EPI, o seguro porque diante da precariedade da forma de contratação e das demandas do trabalho o EPI não é o suficiente e para salvar vidas em tempos pandêmicos precisa de ao menos uma garantia digna caso contrair o vírus.


Tem muitas mulheres como guarda-vidas em Florianópolis?

Não tenho número exato para te dar aqui nesse momento. Mas creio que dos 350 devem ser pelo menos 50 guarda-vidas mulheres e existe também uma repressão muito grande sobre os corpos femininos na praia, por alguns motivos. Primeiro, tem toda uma lógica de como tem que ser amarrado o cabelo, qual que é a roupa que pode trabalhar, como podem ser pintadas as unhas. Também sofrem com o preconceito dos próprios colegas homens como, por exemplo, nas praias com ondas grandes, certos guarda-vidas que ainda carregam um certo machismo, que também é estrutural, que dizem que mulher não consegue trabalhar nessa praia, nessa praia não vai conseguir trabalhar e tal. Então é uma situação complicada ainda. Como eu coloquei, tem praias que a gente trabalha 12 horas sem banheiro, aí imagina se já é difícil para a maioria dos guarda-vidas que são homens, imagina para as mulheres como é trabalhar 12 horas sem a mínima estrutura para ter as condições de higiene humanas ali, de conseguir ir ao banheiro e tal. Então é uma coisa que a gente tem que prestar muita atenção e que a gente tem que falar mais sobre isso: como estão sendo tratadas as guarda-vidas mulheres.


Tem algum outro ponto que você acha que eu deveria ter perguntado ou que você queira complementar?

Queria em primeiro lugar agradecer pela entrevista, fora isso não tem o que complementar. Só indicar algumas páginas para os leitores que quiserem saber mais sobre como anda a situação dos trabalhadores do salvamento aquático no Brasil a fora. Dentro esses indico: @ASVISC @ABASA.SV @guardavidasprevenido no Instagram, também teve duas matérias interessantes do Brasil de fato sobre a situação dos guarda-vidas. Também colocar que é uma demanda da população também, ter um serviço de salvamento aquático de qualidade, porque a gente nunca sabe a hora que podemos precisar, o mar não escolhe a hora de arrastar alguém, de acontecer um arrastamento, um afogamento. Então, para uma nota final, eu diria para acompanharem essa causa dos guarda vidas e todos seguem lutando para salvar vidas. O litoral brasileiro é importantíssimo para o lazer e turismo do nosso país, então que seja tratado com a devida importância e dignidade também quem trabalha nas praias.


 

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