Paulo Meliani | UDESC
Em Veneza, é possível comprar um cartão-postal que, segundo Haug (1997, p. 167), é ao mesmo tempo propaganda da cidade e de um “truste” americano: uma fotografia da Piazza San Marco ocupada por seu notório exército de pombos, mas desta vez dispostos de forma organizada, em caracteres gigantescos que formaram a palavra “Coca-Cola”. Os caracteres, conta Haug, são os mesmo da marca “legalmente registrada”, numa configuração produzida pelo espalhamento de comida para os pombos que, ao se alimentar, formaram em conjunto a logomarca.
Propaganda da Coca-Cola dos anos 1960. Crédito: La Boite Verte
Os pombos não se colocaram ali para formar a logomarca, explica Haug, mas sim para saciar a fome. A comida não foi espalhada para alimentar os pombos, mas sim para fazê-los trabalhar como figurantes, ao se dirigirem a ela, formando um arranjo que é totalmente estranho e externo aos pombos. “Ao incorporarem a comida, eles são subordinados ao capital e incorporados por ele” (HAUG, 1997, p. 167). A imagem do cartão-postal dos pombos formando a logomarca da Coca-Cola, na Piazza San Marco, foi considerada, segundo Haug (1997, p. 167), um triunfo da técnica publicitária capitalista e mostra, simbolicamente, um aspecto fundamental do capitalismo, que é a mobilização de um exército gigantesco de trabalhadores assalariados sob o comando do capital.
O turismo contemporâneo, a prática da viagem de lazer prevista e organizada, como as que são feitas para Veneza, é fruto do desenvolvimento das forças produtivas do capitalismo, que criaram necessidades de consumo a serem satisfeitas durante o tempo liberado do trabalho, aquele tempo destinado pelo próprio capital à recuperação física e mental dos trabalhadores, ou seja, à reprodução da força de trabalho. De acordo com Moretti (2007), o turismo se desenvolve no mundo todo como uma ocupação do “tempo fora do trabalho”, transformando esse tempo liberado do trabalhador em um tempo preso ao mercado, já que o insere nos circuitos de consumo do lazer.
Uma definição conhecida de lazer é aquela dada por Dumazedier (1962, p. 29), que o define como um conjunto de ocupações, nas quais um indivíduo pode se dedicar voluntariamente, seja para repousar, seja para se divertir, seja para desenvolver sua informação ou formação desinteressada, sua participação social voluntária ou sua livre capacidade criativa, depois de estar desengajado de suas obrigações profissionais, familiares e sociais. De acordo com Leiper citado por Pearce (2003, p. 59), todo lazer envolve uma fuga temporária, mas o turismo é a única forma de lazer que implica numa fuga física real, que se traduz pelo ato de viajar, quando se multiplicam as próprias práticas de lazer.
Portanto, entendido como uma forma de lazer, o turismo consiste num conjunto de práticas que, em tese, desenvolvemos voluntariamente quando viajamos para um lugar diferente do nosso habitual, durante os períodos de férias, feriados e folgas semanais, ou seja, no nosso tempo liberado do trabalho. Segundo George (1970, p. 134), a vida do homem moderno é ritmada por ciclos determinados por convenções de trabalho: ciclos cotidianos, semanais, sazonais, de vida ativa, sendo que, cada ciclo, se define por uma alternância entre trabalho e lazer.
Assim, como uma prática que visa satisfazer necessidades de lazer, descanso e entretenimento, entendemos o turismo como uma “mercadoria”, ou seja, “um objeto externo, uma coisa que, por suas propriedades, satisfaz necessidades humanas, seja qual for a natureza, a origem delas, provenham do estômago ou da fantasia” (MARX, 2010, p. 57). Numa sociedade em que praticamente todo o tempo (de todos os dias e de quase todos os dias da semana) é tempo de trabalho, é compreensível que os períodos de “não trabalho” revistam-se de encantamento, assumam foro de raridade e se tornem artigos de luxo (CORDEIRO, 2007, p. 37).
Nesse sentido, os agentes turísticos vendem os destinos turísticos como mercadorias que têm valor de uso pela satisfação de experiências imaginadas e, do mesmo modo que qualquer outra mercadoria, os vendem na perspectiva de lucro pelo capital, obtido por meio da valorização estética do espaço e, principalmente, pela exploração da mais-valia dos trabalhadores, ou seja, dos indivíduos que de fato prestam os serviços de apoio aos turistas durante suas viagens.
Por isso, para a reprodução capitalista, há uma necessidade de socialização do trabalhador que envolve o controle de suas capacidades físicas e mentais, que se realiza por meio de ideologias, como a de uma “ética corporativa”, que incuti no trabalhador a noção de “vocação profissional”, nos termos de Weber (2003, p. 98) ou do trabalho como meio de atingir um fim superior, uma das categorias nas quais Arendt (2008, p. 139) enquadrou as “modernas idealizações do trabalho”. É a ideia de que o trabalho possa ser um meio capaz de fazer com que os indivíduos consigam obter condições dignas de existência e de ascensão social. A conscientização da importância do trabalho e de qualificação profissional sinalizam os meios empresariais, pelos quais os trabalhadores se incorporam à missão capitalista das empresas.
Ideias que se prestam muito bem à subordinação do trabalho ao capital, na medida em que o trabalhador, por meio delas, é conscientizado e preparado para produzir cada vez mais e, consequentemente, dar maiores lucros para quem comprou sua força de trabalho. A incorporação do trabalhador à missão empresarial faz sentido para o capital turístico, a partir do momento em que as forças produtivas padronizam a aparência e o comportamento dos trabalhadores, com o objetivo de valorizar o produto. Grande parte da mercadoria do turismo é vista como desempenho pessoal daquele que a vende, ou seja, o trabalhador, aquele que mostra gentileza e dedicação lisonjeira com o comprador, ou seja, o turista.
Para a produção do turismo, a aparência e o comportamento dos trabalhadores são fundamentais, pois são os empregados que entram em contato direto com os turistas, sendo, portanto, os que de fato sabem a respeito das operações necessárias para a satisfação dos clientes. Nessa perspectiva, o que se espera dos trabalhadores é que, na linha de frente das operações, nos momentos de interação social com os turistas, assumam as maiores responsabilidades, a fim de atender com eficácia, rapidez e cortesia às necessidades dos clientes.
Apesar de estarem sempre presentes, e de serem os indivíduos do lugar que estão realmente em contato direto com os turistas, sendo inclusive responsáveis pela efetiva experiência positiva dos visitantes, os trabalhadores do turismo são considerados, pelas forças produtivas do turismo, apenas como parte dos meios de produção. Aliás, a parte essencial da produção do turismo, da qual será obtido o lucro dos empresários por meio da extração da mais-valia, ou seja, da venda dos serviços prestados pelos trabalhadores que excedem os custos de seus salários.
Assim, os espaços do turismo são como “depósitos de mais-valia”, nos termos de Santos (2002, p. 88), onde os trabalhadores, cotidianamente, prestam muito mais serviços dos que os suficientes para pagar os seus salários. É para viver que o trabalhador vende ao capital sua força de trabalho, como explicou Marx (2006a, p. 36):
(...) a força de trabalho em ação, o trabalho, é a própria atividade vital do operário, a própria manifestação da sua vida. E é essa atividade vital que ele vende a um terceiro para se assegurar dos meios de vida necessários. A sua atividade vital é para ele, portanto, apenas um meio para poder existir. Trabalha para viver. Ele nem considera o trabalho como parte da sua vida, é antes um sacrifício da sua vida. É uma mercadoria que adjudicou a um terceiro. Por isso, o produto de sua atividade tampouco é o objetivo de sua atividade.
Sujeitando-se a execução de tarefas que lhe são ordenadas, em função da venda que fez de sua força de trabalho, o trabalhador prestador de serviços turísticos, assim como qualquer outro, está submetido a “alienação do trabalho”, nos termos de Marx (2006b, p. 110), ou seja, ao estranhamento provocado pelas tarefas que executa e pelos produtos de seu trabalho, que não lhe dizem respeito.
O estranhamento com o trabalho também se dá com o produto do trabalho, que não pertence ao próprio trabalhador, mas pertence a outro individuo, ao sujeito que comprou sua força de trabalho. Desse modo, se estabelece outro tipo de alienação, também descrita por Marx, do “homem em relação a outro homem”, pois se o trabalho não pertence ao trabalhador, pertence a outro homem que, por ser proprietário da força de trabalho de outro, é distinto do trabalhador, este sim um despossuído (MÉSZÁROS, 2006, p. 20).
No turismo, a alienação do trabalho vai além desses estranhamentos do trabalhador com seu trabalho e com seu objeto de trabalho, acontecendo também em função da natureza da atividade, ou seja, pelo estranhamento que há entre o trabalhador e o turista, entre o indivíduo que trabalha e aquele que consome “seu” lazer. Além disso, como os espaços do turismo são de uso exclusivo daqueles que podem neles consumir, há um estranhamento do trabalhador com o espaço, pois, muitas vezes, o seu local de trabalho é um espaço de seu próprio lugar, aquele em que nasceu e se criou, e que agora, em função do turismo, só pode ser vivido por ele como lugar de trabalho.
Referências:
ARENDT, H. A condição humana. 10ª ed. Tradução de Roberto Raposo. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008.
CORDEIRO, I. J. Um estudo sobre a produção capitalista do espaço turístico e as perspectivas de desenvolvimento local na praia da Gamela (Sirinhaém/PE). Dissertação de Mestrado em Geografia. Recife: Universidade Federal de Pernambuco, 2007.
DUMAZEDIER, J. Vers une civilization du lousir? Paris, France: Ed. du Seuil, 1962.
GEORGE, P. A ação do homem. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1970.
HAUG, W. F. Crítica da estética da mercadoria. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1997.
MARX, K. O capital: crítica da economia política. Livro 1: O processo de produção do capital. Volume 1. 27ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.
___. Trabalho assalariado e capital & salário, preço e lucro. 1ª ed. São Paulo: Expressão Popular, 2006a.
___. Manuscritos Econômico-Filosóficos. São Paulo: Martin Claret Ltda, 2006b.
MÉSZÁROS, I. A teoria da alienação em Marx. São Paulo: Boitempo Editorial, 2006.
MORETTI, E. C. Turismo, consumo e produção do espaço: o mundo do trabalho no período técnico científico informacional. Anais do IX Colóquio Internacional de Geocrítica. Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2007.
PEARCE, D. G. Geografia do Turismo: fluxos e regiões no mercado e viagens. São Paulo: Aleph, 2003.
SANTOS, M. O país distorcido: o Brasil, a globalização e a cidadania. São Paulo: Publifolha, 2002.
WEBER, M. A ética protestante e o espírito do capitalismo. 2ª ed. São Paulo: Pioneira Thomson Learning, 2003.
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