Eduardo Silva Sant’Anna [1], Juliana Carneiro [2] & Carolina Lescura [3]
Há na literatura acadêmica diversas pesquisas que se debruçam sobre a caracterização das condições, relações e da organização do trabalho em hotéis. Por um lado, alguns estudos estão orientados à maximização da produtividade dos “colaboradores”, de modo a reduzir os índices de estresse, absenteísmo e rotatividade nas empresas. Por outro, desponta já há algumas décadas também o interesse e compromisso por melhores condições de trabalho e de vida da classe que vive do trabalho no turismo.
Dentre as pesquisas sobre trabalho no turismo, o setor hoteleiro é um dos que mais recebe atenção. Baum et al. (2016) explicam que esse predomínio das pesquisas no setor da hotelaria se justifica pela relativa facilidade em identificar quem são os trabalhadores de hotéis, enquanto em alguns outros segmentos do turismo essa questão não é tão claramente delimitada (como em atividades amplas e que muitas vezes não são ligadas indiretamente ao setor, como o de transportes) quanto em hotéis, agências, guiamento e outros setores tradicionais (Fratucci & Carneiro, 2020). Além disso, a expressividade numérica dos empregos gerados por hotéis contribui para o mesmo fator.
Uma das particularidades da hotelaria é o elogio à cultura do acolhimento, este destinado aos hóspedes, cuja satisfação é objetivo central de qualquer empreendimento hoteleiro. Não questionamos a legitimidade disso, pelo contrário, concordamos que a hospitalidade constitui princípio e fundamento necessários à convivência em sociedade. No entanto, outro aspecto nos chama a atenção: a coexistência da hospitalidade com turistas e condições de trabalho amiúde hostis aos trabalhadores.
Recuperamos essa discussão da dissertação de Magalhães (2006), que afirma haver um aparente paradoxo: à medida que hotéis exigem a prestação de um serviço de qualidade, afetuoso e hospitaleiro, os trabalhadores são frequentemente expostos a riscos físicos, químicos e psicossociais; o que parece sugerir que o bem-estar e acolhimento são prerrogativas somente dos hóspedes, negligenciando quem trabalha. A autora indica que justamente a hospitalidade oferecida aos hóspedes só é viabilizada em detrimento da saúde de trabalhadores, em seu caso, mais especificamente, da saúde das camareiras. Em pesquisa recente sobre a qualidade de vida no trabalho de camareiras de hotéis, Camargo (2020) mostra que essa realidade não mudou nos últimos anos.
Figura 1: Jornadas de trabalho flexíveis?
Entrevistador: Nós temos jornadas de trabalho flexíveis.
Candidata: Ótimo! Então eu decido que horas eu trabalho?
Entrevistador: Não, nós decidimos que horas você trabalha. Esticamos o máximo que podemos. É bem flexível.
Fonte: Work Chronicles.
Encontramos na noção de trabalho decente pistas para refletir sobre o acolhimento do ponto de vista de quem é responsável pelo acolher: uma ampla variedade de ocupações que se dedicam ao trabalho em hotéis. A noção de trabalho decente foi formulada pela primeira vez oficialmente pela Organização Mundial do Trabalho, em 1999, na 87ª Reunião da Conferência Internacional do Trabalho (OIT, 1999). O relatório gerado esclarece premissas e ações com o objetivo de garantir condições e direitos de trabalho decente e produtivo em condições de liberdade, equidade, segurança e dignidade humanas para homens e mulheres em qualquer lugar do mundo. A noção de trabalho decente deve ser construída, ao mesmo tempo, pelos governos, empregadores e trabalhadores ao acomodar seus diferentes interesses de maneiras criativas para responder à demanda de trabalho decente que lhes é dada por indivíduos, famílias e comunidades.
Além de ser uma agenda política institucional e governamental preconizada pela OIT, o trabalho decente tem sido adotado como bússola para investigações científicas em diferentes campos do conhecimento. Particularmente na Psicologia, Duffy et al. (2016) propõem uma Teoria da Psicologia do Trabalho ancorada na proposição de trabalho decente. Os autores derivam do conceito original cinco características balizadoras para o trabalho decente, que são adotadas no artigo: condições de trabalho seguras do ponto de vista físico e interpessoal; jornadas de trabalho que permitam ócio e descanso; valores organizacionais que complementem os valores sociais; remuneração adequada; e, acesso adequado à saúde.
A partir dessas ponderações, sem a pretensão de realizar uma análise exaustiva das interfaces entre o trabalho decente e o trabalho hoteleiro, realizamos um cotejamento exploratório entre as características mencionadas no parágrafo anterior e a literatura sobre trabalho em hotéis. O Quadro 1 apresenta a síntese deste exercício: na primeira coluna apresentam-se as características do trabalho decente e na segunda estão dispostos exemplos da literatura pertinente às condições de trabalho na hotelaria que apontam para um distanciamento dos elementos apresentados na primeira coluna (Sant´Anna, Carneiro & Lescura, 2021).
Quadro 1 - Cotejamento entre características do trabalho decente e do trabalho na hotelaria
Fonte: Elaborado pelos autores (2021). As referências completas podem ser encontradas no artigo completo.
A comparação entre as características do trabalho decente e as condições de trabalho na hotelaria é útil na identificação da presença de elementos que não configuram a hospitalidade e ademais a antagonizam. Não supomos aqui que o setor hoteleiro, de forma generalizada, viole todas as características do trabalho decente apresentadas, especialmente em razão da heterogeneidade do setor, que torna delicada a generalização de características do trabalho (Baum & Mooney, 2019). No entanto, parece contraditório que o setor que preconiza a hospitalidade e tenta distinguir-se pelo bem-receber e acolhimento crie condições de trabalho tão desfavoráveis para os trabalhadores. À medida que se exige a prestação de um serviço acolhedor, com a demonstração de afeto com hóspedes, as características da precarização do trabalho presentes na hotelaria não apenas dificultam a prática da hospitalidade, como também não são perpetuadas sob os trabalhadores.
Assim como Malleville & Ruiz (2017) questionam-se sobre o acolhimento em âmbito organizacional de trabalhadores da saúde “Quem cuida dos que cuidam?", indagamos o mesmo sobre os trabalhadores da hotelaria: quem acolhe aos que acolhem?
[1] Mestrando em Turismo pelo PPGTUR – UFF.
[2] Doutorando em Turismo pela EACH – USP.
[3] Doutora em Administração pela UFL e Docente na UFOP.
Referências
Baum, T., Kralj, A., Robinson, R. N. S., & Solnet, D. J. (2016). Tourism workforce research: A review, taxonomy and agenda. Annals of Tourism Research, 60, 1–22.
Baum, T., & Mooney, S. (2019). Hospitality employment 2033: A backcasting perspective. International Journal of Hospitality Management, 76(2), 45-52.
Camargo, G. F. “Tem vez que a gente não consegue nem andar”: o trabalho das camareiras de hotel em São Paulo. Labor Blog.
Duffy, R. D., Blustein, D. L., Diemer, M. A., & Autin, K. L. (2016). The psychology of working theory. Journal of Counseling Psychology, 63(2), 127-148.
Fratucci, A. C. & Carneiro, J. (2020). Trabalhadores do turismo: de quem estamos falando? Turismo: Estudos e Práticas (UERN), 9(Dossiê temático 2), 1-12.
Magalhães, G. F. de O. (2006). O sorriso que o relógio transforma em dor: custo humano da atividade, estratégias de mediação e qualidade de vida no trabalho de camareiras de hotéis. Dissertação. Mestrado em Psicologia. Universidade de Brasília, Brasília, DF, Brasil.
Malleville, S., & Ruiz, P. (2017). Presentación de la organización bajo estudio y descripción de los puestos. In: J. C. Neffa & M. L. Henry (Eds.), ¿Quién cuida a los que cuidan? Los riesgos psicosociales en el trabajo en los establecimientos privados de salud. pp. 115–128. La Plata, Argentina: Facultad de Ciencias Económicas.
Organização Internacional do Trabalho – OIT. (1999). Relatório sobre Trabalho Decente. Genebra: OIT.
Sant’Anna, E. S., Carneiro, J., & Lescura, C. (2021). Quem acolhe os que acolhem? Trabalho decente como ethos da hospitalidade organizacional na hotelaria. Rosa dos Ventos - Turismo e Hospitalidade, 13(1), 50-70.
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