Francisco Xavier da Silva Júnior & Mayanne Fabíola Silva Araújo
Fonte: Instituto de Estudos Socioeconômicos (2019).
Entendendo o turismo como fenômeno globalizado, faz-se comum estudos de segmentação de mercado onde a comunidade LGBTQIAP+ é inserida como potencial público consumidor em virtude do seu perfil, das oportunidades de venda, das empresas do ramo turístico e consequentemente de destinos que possuem, no senso comum, o selo gay friendly (Azevedo, Martins, Nádia & Farah, 2012). Todavia, o cenário proporcionado para recepção do capital econômico (Bourdieu, 2011) desse público não se reflete para a oportunidade de postos de trabalhos formais no ramo do turismo para a comunidade LGBTQIAP+, em especial, para pessoas transgênero, pois este grupo ainda encontra limitações sociais para não inserção e aprimoramento de seu capital cultural e econômico, que vão do âmbito educacional ao livre modo de viver.
Tratando-se do aprimoramento do capital cultural, a qualificação profissional em turismo representa uma aplicação de aspectos e aptidões específicas para o setor turístico. Para Silva (2019), por mais que a qualificação profissional em turismo tenha o apelo econômico, por entender o turismo como uma via de oportunidades mercadológicas, esta não deveria excluir o aspecto social do turismo. Em razão desse complexo fluxo, a qualificação profissional em turismo se utiliza apenas do viés econômico. Para Parente e Moesch (2016), os desafios das políticas de qualificação para um turismo mais humanizador esbarram nas dificuldades de uma política mais consistente e na crescente demanda de serviços especializados.
Em virtude da sazonalidade do turismo, a oferta de emprego pode tornar-se dificultosa para o público em geral com qualificação ou não e, sobretudo para pessoas transgênero que são historicamente tidas como inferiores aos demais na luta pelos postos de trabalho, bem como limitadas em uma gama de setores da vida social (Laframboise, 2005). Tal falta de sensibilidade tem a ver com os altos índices de violência concentrados desta população no Brasil, denominada transfobia. A transfobia não perpassa apenas pela violência social do estigma (Arendt, 1970), mas também por outras modalidades de violência de atentado à vida e integridade moral (Lins & Mesquita, 2016).
O estigma social põe as pessoas trans em situações de alta vulnerabilidade na vida cotidiana, resultando em riscos para saúde física e mental, pobreza, desemprego e acesso mínimo a políticas públicas de saúde, empregabilidade, educação, segurança e assistência social (Hugtho, Reisner & Pachankis, 2015). Assim, as políticas públicas voltadas para as pessoas trans são direcionadas para assistência médica, como prevenção de doenças e combate à exploração sexual, e não são norteadas para a inserção no mercado de trabalho e na educação (Andrade, 2012). O constante abuso, violência e discriminação na comunidade de homens e mulheres trans assevera-se ainda mais com a introjeção cultural negativa formada sobre e da imagem na transformação dos sentimentos e dos corpos de cada indivíduo (Case & Stewart, 2013).
Moura & Lopes (2017) enfatizam que muitas empresas resistem em descontinuar com a ruptura da identificação pessoal da pessoa trans considerando seu gênero e nome social admitido, mostrando que as organizações ainda não estão preparadas para lidar com diversidade. De acordo com a Associação Nacional de Travestis e Transexuais - ANTRA (2020), apenas 4% da população de mulheres trans encontra-se empregada em trabalho formal, 6% estão envolvidas com atividades informais e subempregos e, massivamente, 90% da população trans brasileira utilizam a prostituição como fonte de renda. Esses dados mostram que existe uma exclusão e marginalização por parte da sociedade, onde são raras as oportunidades de emprego para essa parcela da população no Brasil.
O surgimento de diversas organizações não governamentais para assistência da comunidade trans no mercado de trabalho brasileiro colabora para a disseminação de informação - por meio das redes sociais e/ou sede, de oportunidades de emprego formal. Além disso, essas organizações promovem capacitação profissional, projetos publicitários e atos comunitários para divulgação das vagas de emprego, bem como conscientização social (Almeida & Vasconcellos, 2018).
Para a representação da Attransparência[1], a qualificação profissional de pessoas transgênero no turismo de Natal - Rio Grande do Norte, não é consolidada, visto que as oportunidades são escassas e isso pode ser compreendido, pois de acordo com o(a) respondente, nunca trabalhou com o turismo, e o mesmo acontece com os(as) demais integrantes da organização. Diante disso, o(a) entrevistado (a) deixa claro que o acesso ao trabalho é dificultado por todos os estigmas sociais impostos à comunidade trans. “Tal questão é bastante preocupante, uma vez que as organizações podem não levar em consideração as habilidades e competências de uma pessoa no momento da contratação, ou durante o desenvolvimento das atividades laborais.” (Dantas & Gomes Filho, 2019, p. 28).
Um dos fatores que impedem as pessoas trans de entrar no mercado de trabalho é o baixo nível de escolaridade. O problema não é somente a oportunidade de estudar, mas a dificuldade de permanecer na escola, principalmente quando se começa a despertar sua identidade de gênero. A escola é um ambiente hostil para pessoas trans. Piadas, perseguições, não uso de nome social, preconceito, tudo isso tem contribuído para a desistência precoce desse público em relação aos estudos como relata o(a) entrevistado(a) dando exemplo da sua jornada que chegou a desistir de estudar por um tempo, mas graças ao acolhimento de uma escola específica, a qual lhe deu espaço para palestrar sobre o assunto com os funcionários e os alunos, conseguiu concluir seus estudos.
Com a pandemia do Covid-19, o mercado de trabalho ficou ainda mais difícil para as pessoas transgêneros. As vagas cada vez mais escassas, o desemprego aumentando a cada dia, foi então que a ONG concentrou esforços em recolher materiais de higiene pessoal, álcool em gel e alimentos para assistir as(aos) integrantes. O(a) entrevistado(a) relatou que a ONG sempre luta para que as pessoas trans consigam ocupar espaços que de fato lhe competem como pessoas, pois preconceitos e estereótipos que cercam as pessoas trans as colocam em empregos extremamente instáveis. Essas pessoas estão em trabalhos domésticos, telemarketing, trabalhos sexuais, trabalhos ocasionais (sob demanda), às vezes arte e moda, atividades ilegais e atividades informais (vendedores ambulantes, faxineiras, lavadores de automóveis, vendedores ambulantes, cabeleireiros, barman, autônomos).
Com o intuito de alargar a voz da comunidade, a ONG tem desempenhado uma ampla frente de atuação com o objetivo de minimizar os impactos da Covid-19 no cenário trans em Natal. As experiências de pessoas trans no trabalho têm a capacidade de nos revelar diversas desigualdades que giram em torno de hierarquias subjetivas de organizações comandadas por heteros cis gêneros que ainda precisam ser superadas (Yavorsky, 2016).
Intenciona-se com este texto contribuir com todas(os), que por meio da educação ou qualquer outro meio social, buscam formar opiniões sólidas, desenvolver ações para superar preconceitos, possibilitar novas atitudes frente à comunidade e minimizar as lacunas de exclusão social enfrentadas pelas pessoas transgênero.
[1] Associação Potiguar de Travestis e Transexuais na Ação da pela Coerência no Rio Grande do Norte.
REFERÊNCIAS
Almeida, C.B. & Vasconcellos, V. A. (2018). Transsexuais: transpondo barreiras no mercado de trabalho em São Paulo? Revista Direito FGV. 14(2). pp. 302-333.
Andrade, L. N. (2012). Travestis na escola: assujeitamento e resistência à ordem normativa. Tese de Doutorado. Fortaleza, Universidade Federal do Ceará.
Arendt, H. (1970). On violence. Orlando: Harcourt Brace Jovanovich.
Associação Nacional de Travestis e Transsexuais. (2020). Boletim nº 03/2020. ANTRA: Rio de Janeiro.
Azevedo, M. S.; Martins, C. B.; Nádia, P. K & Farah, O. E. (2012). Segmentação no setor turístico: o turista LGBT de São Paulo. Revista de Administração da UFSM. 5(3). pp. 493-506.
Bourdieu, P. (2011). Razões práticas: sobre a teoria da ação. 11º ed. Papirus Editora: Campinas, SP.
Case, K. A. & Stewart, B. (2013). Intervention effectiveness in reducing prejudice against transsexuals. Journal of LGBT Youth. 10(1). pp. 140-158.
Dantas, J. V. D., & Gomes Filho, A S. (2019). Diversidade de Gênero no Mercado de Trabalho/Gender Diversity in the Labor Market. Id On Line Revista De Psicologia, 13(48), 26-39.
Hughto, J. M. W., Reisner, S. & Pachankis, J. E. (2015). Transgender stigma and health: A critical review of stigma determinants, mechanisms, and interventions. Social Science& Medicine. 147. pp. 222-231.
Laframboise, S. (2005). Transfobia, o que é? Recuperado de: https://midiaindependente.org/pt/blue/2005/08/325671.shtml.
Lins, C. C. & Mesquita, M. R. (2016). Exercício da cidadania e luta pela vida: precariedade das vidas de travestis e transsexuais no estado de Alagoas. Emancipação. 16(1). pp. 45-60.
Moura, R. G. & Lopes, P. L. (2017). Comportamento organizacional frente à diversidade: a inclusão de travestis e transexuais no mercado de trabalho. XIV Simpósio de Excelência em Gestão e Tecnologia. Rio de Janeiro.
Parente, F. M. &Moesch, M. M. (2016). Desafios das políticas de qualificação para um turismo mais humanizador. XIII Seminário Anual da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Turismo, São Paulo – SP.
Silva, I. C. M. (2019). A dimensão política da qualificação profissional na política pública nacional de qualificação profissional em turismo. (Dissertação de Mestrado). Programa de Pós-graduação em Turismo, Universidade Federal Fluminense, Niterói – RJ.
Yavorsky, J. E. (2016). Cisgendered organizations: trans women and inequality in the workplace. SociologicalForum, pp. 1-22, doi: 10.1111/socf.12291.
Francisco Xavier da Silva Júnior
Professor no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Norte - Campus Canguaretama
Doutorando em Turismo pelo Programa de Pós-graduação em Turismo da Universidade Federal do Rio Grande do Norte
Mayanne Fabíola Silva Araújo
Mestranda em Turismo pelo Programa de Pós-graduação em Turismo da Universidade Federal do Rio Grande do Norte
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