Fernanda Costa da Silva | UFRGS | EMATER-RS/ASCAR
Arquivo pessoal da autora
Essa foi a pergunta formulada a mim mesma, reiteradas vezes, notadamente depois de minha Graduação. Ao longo desses mais de vinte anos de trabalho no setor turístico, a conclusão é de que “entrei” pelas razões erradas (informalmente, aos quinze anos, atuando no então superestimado Turismo Estudantil), mas, permaneci no Turismo por todas as razões certas: a formação ampla e reflexiva, as possibilidades de interação com diferentes culturas, com espaços e territórios diversos. Ainda assim, o mercado reservou surpresas (ora agradáveis, ora nem tanto), as quais me fizeram (re)pensar sobre minha escolha profissional, dados os fatos demasiadamente inusitados que insistiam em se apresentar na minha trajetória profissional: montagem de cama elástica, organização de jogos intermunicipais para jovens, impossibilidade de chegar ao campo por falta de verba para abastecer o veículo municipal, contato com pobreza extrema, resolução de conflitos de violência doméstica e infantil, vivência de assédio moral e sexual, realização de jornada de trabalhos intermitentes de segunda a sábado (das 8h às 4h), o cotidiano dos bastidores do jogo político, as esferas do micro poder em instituições públicas e privadas, domínio sobre temas de crédito e investimentos, resolução de furtos em eventos, pressão de conseguir manter aulas de qualidade para turmas de cinquenta pessoas (após já ter trabalhado 9h no mesmo dia), entre tantos outros episódios nunca imaginados, quando daquelas noites de estudo aos vinte e poucos anos.
Afinal: “eu deveria ter estudado sobre isso em aula, ou estudei, mas não lembro (ou, ainda, teria eu faltado à aula, estaria eu conversando no fundão, ou apenas pensando na próxima festa, quando a teoria alusiva ao acontecimento inusitado foi tratada)?” Ao longo dos anos de trabalho passei a encontrar colegas no setor que também se perguntavam essas mesmas questões e que apresentavam a mesma perplexidade em face de episódios similares aos meus. O final de nossas conversas sempre convergia para a frase: “se contar, ninguém acredita”.
Até que em 2019, com 21 anos de trabalho totalmente dedicado ao turismo (nas idas e vindas entre os setores público e privado, entre a pesquisa, o ensino e a extensão), pensei: e por que não contar? Desde então, passei a trabalhar na ideia de compor relatos coletivos sobre os bastidores do trabalho no Turismo. Não ousaria fazer um livro quase “biográfico” da minha trajetória profissional (muito embora eu já tenha produzido muitas anedotas no setor), sobretudo porque turismo sempre é coletividade e porque eu tinha a certeza de que também em outros relatos estariam retratadas a minha e a trajetória de tantos outros colegas de setor.
Porém, ainda havia mais um capítulo nesta obra: nunca me contaram sobre a possibilidade de um 2020 e de seus possíveis impactos no Turismo. Jamais estudamos pandemias relacionadas ao setor, tal qual o conhecemos na contemporaneidade. Então, da minha Graduação até os dias de hoje, eu também nunca havia me debruçado a refletir e estudar sobre isso. O processo da pandemia também afetou a produção do livro “O que nunca nos contaram sobre Turismo? Bastidores do Trabalho”. Foi preciso reescrever, repensar e reformular este livro, porque, com a pandemia, também veio o aprofundamento da precarização do trabalho, tal qual espelhada em Sociedade do Cansaço, explanada por Byung-Chul Han (2017) – obviamente, obra digna de nota, guardadas as proporções e as peculiaridades da América Latina e do Brasil pandêmico.
No Turismo, ela foi cruel: quem não perdeu emprego, foi submetido à redução de pagamento. Quem não se enquadrou nos últimos dois casos, sofreu com a sobrecarga de trabalho (lembrando que não é home office se você não pode sair de casa). Observei colegas, amigos e meus educandos passando por demissões e cortes salariais; também fui uma das “desligadas” em uma das instituições de trabalho na qual atuava e, na outra em que ainda atuo a jornada de trabalho parece não ter fim – no momento em que escrevo este artigo, por exemplo, tenho um dos olhos roxos, em decorrência de um pequeno derrame que se deu durante a noite, possivelmente por conta das horas acumuladas em frente a tantos monitores. Então, junto da pandemia de 2020, a estafa e a desmotivação com o setor e com as condições de trabalho foram acontecimentos que contribuíram para a necessidade do repensar esta publicação: ora desmotivada pelo contexto, ora motivada pela proeza e pela necessidade do feito.
Buenas, como não creio em ironias do destino, lançou-se o livro em meio ao 2021 ainda pandêmico, para ratificar que nunca somos preparados o suficiente para trabalhar com Turismo. Para o bem ou para o mal, a prática da profissão sempre nos surpreende. Talvez seja isso que mais nos mova... E é sobre isso que se trata este livro: afinal, o que nunca nos contaram sobre Turismo?
Em cada capítulo, uma história, que também pode(ria) ser a de tantos outros trabalhadores que irão ler-nos. Não nos propomos a explicitar uma relação direta dos relatos com as teorias e com autores alusivos aos temas ilustrados: mas, está tudo ali. A abertura (não poderia ser mais primorosa) trata de assédio às Turismólogas, sob a perspectiva da autora Alessandra Farinha e, através deste capítulo, salta-nos aos olhos o que diz Bourdieu, em A Dominação Masculina (1999). Na sequência, o contexto rural, mediante abordagem dos desafios do trabalho junto às famílias da agricultura familiar, nos fazem lembrar do ser para o outro e do processo de relativizar, quando do trabalho com culturas distintas da nossa – aqui, abordado por Cristiane Berselli e, quatro capítulos adiante, retomado de forma mais lúdica, por Renata Bombana. Fernanda Sklovsky, uma das não Turismólogas do livro, explana toda a complexidade do Turismo de Base Comunitária (TBC) através de seus relatos sobre o trabalho do design territorial, desenvolvido por ela em diversas partes do País, trazendo-nos a lembrança de O Povo Brasileiro, do sempre necessário Darcy Ribeiro (2001). Na sequência, Fernanda Carvalho e Maximilianus Pinent elucidam os bastidores da gestão pública municipal, ilustrando-nos semelhanças contidas em A Cidade como um Jogo de Cartas (Santos, 1988). Em seguida, Sabrina Lewandowski explana sobre a condição da maternidade no mercado de trabalho turístico – fazendo-nos pensar sobre algumas das reflexões de Simone de Beauvoir (1989). Com uma abordagem leve, Sara Bonin traz-nos as risadas do livro, elucidando episódios cômicos da rotina de um trabalhador com pouca experiência em hotelaria, precedendo também as possíveis risadas (e espanto) do capítulo seguinte, voltado ao setor de eventos, abordado por mais uma autora também não Turismóloga do livro, Simone Basso. O penúltimo capítulo é especial para os trabalhadores das urbanidades: colegas formados em Geografia, Arquitetura, Planejamento Urbano e Regional, Museologia, entre outras que convergem à abordagem turística territorial e humanizada, vão saborear a caminhabilidade urbana e como ela pode melhorar os processos de lazer e turismo local, a partir do olhar de Suzana Pohia, a qual nos traz a relevância do Turista Cidadão e do Turismo de Proximidade, teorias lidas tantas vezes, por exemplo, em abordagens de Gastal (2002), bem como podemos perceber, neste capítulo, o que nos diz Morigi (2016), no que se refere à perspectiva de uma cidade educadora. Por fim, deixo minha contribuição no último capítulo do livro, com um fast check-out: historinhas curtas, que ilustram a relação do trabalhador do Turismo com todos os temas anteriormente abordados, e outros mais: um misto de risos, perplexidade e, até mesmo, um toque de motivação, para acreditarmos que (ainda) podemos trabalhar no setor.
Aos estudantes, indicamos atenção aos relatos sinceros reunidos, de profissionais que contam as curiosidades das atividades ligadas, direta ou indiretamente, ao setor. Aos já formados, trabalhadores do setor, mesmo que sua formação na Graduação não tenha sido nesta área, certamente haverá identificação, ao menos com um dos casos expostos. Em suma, a ideia é essa: abrir a “porta dos fundos” e convidar a todos para entrar, olhar para o exercício do profissional com outros olhos e refletir sobre que tipo de setor é construído cotidianamente.
Os autores reunidos, profissionais com os quais tive o prazer de estudar e/ou de trabalhar ao longo desses anos de dedicação ao Turismo, falam abertamente sobre algumas de suas experiências. As narrativas honestas evidenciam momentos de aprendizado, graça, recompensa, dor, contradição, injustiça e, até mesmo, de dúvidas sobre a relevância do trabalho exercido.
Nosso intuito é que os(as) leitores(as) aproveitem essa grande viagem sobre os episódios compartilhados. Ao final, esperamos que saiam transformados(as), de alguma forma, já que o Turismo tem essa função em nossas vidas.
REFERÊNCIAS
Beauvoir, S. (1989). O segundo sexo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.
Bourdieu, P. (1999). A dominação masculina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil.
Gastal, S. (Org.). (2002). Turismo: 9 propostas para um saber-fazer. Porto Alegre: EDIPUCRS.
Han, B. (2017). Sociedade do Cansaço. Petrópolis, RJ: Vozes.
Morigi, V. (2016). Cidades educadoras: possibilidades de novas políticas públicas para reinventar a democracia. Porto Alegre: Sulina.
Ribeiro, D. (1995). O povo brasileiro. Rio de Janeiro: Companhia das Letras.
Santos, C. N. F. dos. (1998). A cidade como um jogo de cartas. Niterói: EDUFF; São Paulo: Projeto Editores.
TOME NOTA!
Livro: "O que nunca nos contaram sobre Turismo? Bastidores do Trabalho"
Autores: Fernanda Costa da Silva (Org.), Alessandra Buriol Farinha, Cristiane Berselli, Fernanda Sklovsky, Fernanda Ricalde Teixeira Carvalho, Maximilianus Pinent, Renata Graciela Bombana, Sabrina Aguiar Lewandowski, Sara Massotti Bonin, Simone Basso e Suzana Pohia.
Editora: Dialética
ISBN: 9786558771456
Nº de Páginas: 112
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