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“Não é só estética, não é só moda, é parte do que nós somos e representamos”: mulheres negras e seus cabelos crespos no setor da aviação civil brasileira

Nathália de Oliveira | Labor Movens


Recentemente um importante coletivo de aeronautas negros, o Quilombo Aéreo, participou de um famoso programa dominical buscando um prêmio para auxiliar no objetivo do projeto, a promoção da inclusão, do empoderamento e da visibilidade da comunidade negra na Aviação Civil Brasileira. Para além da importância do projeto em si, uma das coisas que chamou a atenção do apresentador foi o cabelo das participantes – as fundadoras da organização e comissárias de voo Laiara Borges e Kenia Aquino – que estavam trançados. 


Laiara e Kenia, duas mulheres negras, inclusive reforçaram, em suas primeiras falas no programa, o quanto seus cabelos naturais não eram aceitos no setor aéreo brasileiro. Lembrei então de um artigo produzido por mim em parceria com outras mulheres do grupo de pesquisa Gênero, Raça e Interseccionalidades no Turismo (GRITUs) em que relatamos nossa conversa com seis mulheres negras integrantes (ou ex-integrantes) da aviação em que elas narraram os violentos processos de admissão (aquilo que o “moderno” sistema de Gestão de Pessoas ou Recursos Humanos, como preferirem, – vai chamar de Agregar Pessoas) pelo qual elas tiveram que passar para seu recrutamento no setor.


Assim surge este texto, uma reflexão sobre a aceitação (ou a falta) de corpos negros com seus cabelos naturais na atividade turística, afinal, como explicam Calvet et. al. (2021), o padrão estético dos trabalhadores da aviação, em especial das comissárias de voo, está vinculado aos cânones ocidentais de beleza – mulheres magras, altas, loiras, de traços finos e cabelo liso. Todavia, sabemos que o corpo da mulher negra é por si só um ato político e que, por isso, quando decidem manter seus cabelos naturais no mundo corporativo, são vistas como erradas, impróprias, rebeldes etc., mostrando como o racismo se faz presente no setor. Logo, sempre foi muito comum que a estrutura capilar fosse alterada a fim de se adequar a padrões, entendendo que “a oportunidade de encontrar bons empregos aumentaria se tivessem cabelo alisado” (Hooks, 2005, p. 3).


As comissárias negras foram taxativas ao explicar que “(...) se você chegar em uma companhia [aérea] com cabelo black para uma entrevista, sem chance (...)” e ainda todas elas conhecem histórias de “(...) pessoas que foram fazer a seleção com cabelo afro, black e não entraram. Com inglês, com espanhol, com francês e não entraram. As primeiras eliminadas do processo seletivo só porque estavam com cabelo afro (...)” (Oliveira et al, 2022a, p. 85).


As histórias ouvidas mostram como o padrão aceito na aviação brasileira traz em seu bojo o ideal de beleza de mulheres brancas. Como explica Chapman (2007), o cabelo considerado “bom” – isto é, o cabelo de mulheres brancas, ostenta um código de poder e capital social. Poder de ser o modelo, o padrão, o exemplo. E aquelas que se aproximam desse modelo são minimamente aceitas, logo, frequentemente é pedido para abaixar volume, alisar etc.:


(...) eu lembro que na escola [de aviação] eu não alisava o cabelo né (...). O diretor falou comigo assim: a gente vai te indicar para um processo seletivo na empresa X, mas você só pode ir se você alisar o cabelo, se você não alisar o cabelo você não vai ser contemplada (Bessie Coleman in Oliveira et al, 2022a, p. 85).  

 

Os processos são tão violentos que adoecem (física e mentalmente) as mulheres negras que se veem obrigadas a mudar o seu eu, a sua identidade para entrar em padrões: “(...) eu fui cortando [o cabelo]. Eu fui cortando, cortando, cortando. Eu me transformei numa pessoa que virou aquilo ali para ser aceita (...), eu tinha o cabelo aqui na cintura todo enrolado, cacheado, cheio, lindo, maravilhoso, potente, pura potência minha coroa” (Brenda Robinson in Oliveira et al, 2022a, p. 88)”.  O adoecimento vem também na forma física pois, como Laiara comentou no programa em questão, teve uma “paralisia facial por causa de alisamento de cabelo”.


Aquelas mulheres que conseguem entrar na aviação sem alterar a estrutura de seus cabelos provavelmente não foram com eles soltos na entrevista. Depois são usadas como exemplos, modelos de diversidade dentro da empresa pois, como comenta uma comissária negra: “eles aceitam depois, porque aí eles tiram foto, colocam lá que é igualdade, diversidade (...)” (in Oliveira, et al., 2022a, p. 87). Questiono aqui que diversidade é essa que as empresas do setor propõem, já que as estimativas do Quilombo Aéreo dão conta que apenas 5% dos comissários de voo são negros no Brasil, enquanto a população brasileira é 55,5% negra.


Kenia contou, na atração em questão, que “quando eu comecei em 2008 [na aviação], eu já mais poderia voar com o meu cabelo como está hoje [natural] por uma questão que simplesmente não era aceito”. É indispensável então reconhecer a importância do Quilombo Aéreo nesse processo de aceitação dos corpos negros com seus cabelos naturais na aviação brasileira. Laiara narrou no programa dominical que:


(...) foi muita briga do Quilombo aéreo, uma construção de ações junto às companhias, um debate intenso e constante explicando que isso [cabelo natural de pessoas negras] não é só estética, não é só moda, é parte do que nós somos e representamos. E aí hoje a gente já consegue entrar no avião com esse cabelo.

Como Laiara explica, o cabelo crespo é uma marca racial que se destaca, uma linguagem que comunica e informa, um signo que carrega significados culturais, políticos e sociais importantes e específicos que classifica e localiza dentro de um grupo étnico/racial (Gomes, 2003). Logo, o cabelo crespo natural na aviação civil é símbolo de luta e resistência em um mercado de trabalho tão branco e elitizado que impõe barreiras para que negras ali estejam e permaneçam (Oliveira et al, 2022b).


Finalizando a reflexão, fica o convite para seguirem as redes socias desse importante projeto que, aos poucos, mostra que o lugar da mulher negra é também dentro dos aviões, seja como passageira, comissária e ainda pilota - lembrando que, no momento, não há pilotas negras em atuação no país.

 

 

Fonte: Globoplay, 2024



Referências


Calvet, N. A., Cond, C. I., Ballart, A. L., & Almela, M. S. (2021). Desigualdades de género en el mercado laboral turístico (Vol. 14). https://www.albasud.org/noticia/es/1299/desigualdades-de-genero-en-el-mercado-laboral-turistico 

Chapman, Y. M. (2007). “I am not my hair! or am I?”: Black women’s transformative experience in their self perceptions of abroad and at home experience [Georgia State University]. https://scholarworks.gsu.edu/anthro_theses/23/ 

Gomes, N. L. (2003). Corpo e cabelo como símbolos da identidade negra Body and hair as symbols of black identity. II Seminário Internacional de Educação Intercultural; Gênero e Movimentos Sociais, 1–14. http://titosena.faed.udesc.br/Arquivos/Artigos_textos_sociologia/Negra.pdf 

hooks, bell. (2005). Alisando nossos cabelos. Revista Gazeta de Cuba - Unión de Escritores y Artista de Cuba.

Oliveira, N. A. de, Gabrielli, C. P., Santos, G. N., & Borges, L. B. (2022a). “Tem que tirar o black”: mulheres negras e os violentos processos de seleção de emprego na aviação brasileira. Anais do 3o Seminário Virtual Perspectivas Criticas Para o Trabalho Em Turismo, 80–91. http://repositorio2.unb.br/jspui/handle/10482/45989 

Oliveira, N. A. de, Gabrielli, C., Santos, G. N. dos, & Borges, L. A. (2022). Intersectionality between racism and sexism in the Brazilian Airline Industry: perceptions and strategies of Black Women Crewmembers. In P. Cembranel, J. R. R. Soares, & A. R. C. Perinotto (Eds.), Promoting social and cultural equity in the Tourism Sector (pp. 155–176). IGI Global. https://www.igi-global.com/book/promoting-social-cultural-equity-tourism/288546 

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