Lara Blessmann | AFORA VIAGENS & Dianine Censon | UFT/UNICENTRO/UFRGS
A pandemia trouxe inúmeras mudanças culturais, sociais etc. Ainda que a temática venha sendo incansavelmente repetida, precisamos partir dessas afirmações para dizer: no mundo do trabalho não foi diferente. O discurso de adaptação às demandas do mercado, de aceitação do online, de reinvenção, de criatividade, de inovação, de força, e inúmeros outros termos e sinônimos que, em maior ou menor medida, escancaram abismos sociais a partir de realidades individuais tão diversas.
Iniciamos esse texto, Lara e Dianine, afirmando: só é possível que estejamos aqui, escrevendo, pensando, discutindo, dialogando, porque ocupamos um lugar de extremo privilégio. Cursos online, reuniões em plataformas que nunca havíamos utilizado, aulas em vídeo, o tal do trabalho remoto. Fazemos parte de uma ínfima parcela da população brasileira que tem disponibilidade para acompanhar todas essas mudanças. Fazemos parte de uma ínfima parcela da população brasileira que pôde escolher se adaptar.
As reflexões desse texto, escrito a duas mãos, partem do mundo do trabalho em turismo e de pequenos incômodos que sentimos diariamente. E, assim como são os incômodos que compartilhamos, ainda que sejamos duas, levaremos esse texto de forma com que as ideias, as experiências, as realidades, as relações e vozes se misturem. Lara é agente de viagens há sete anos. Seu foco sempre foram os roteiros internacionais de lazer. Dianine é professora e foi agente de viagens também por sete anos, até 2019. Seu foco eram os processos burocráticos de documentação para viagens. Os questionamentos que embasam as próximas linhas dizem respeito principalmente ao trabalho em agências de viagens, mas não somente a esse trabalho. Talvez digam respeito ao mundo social.
Escolhas. Arquivo pessoal.
A primeira imagem que nos vêm à mente quando pensamos/falamos sobre escolhas é um homem branco, hétero, entre 30 e 50 anos. Temos certeza que vocês, ao lerem isso, conseguiram imaginar a cena. Os vídeos de empresários bem-sucedidos, de coachs, de motivadores, de entusiastas da força, da garra. A ideia do empreendedor de si, que para além de todos os problemas, todos os obstáculos, todos os percalços, consegue ascender, crescer, mudar, se adaptar. Há um jargão interessante nesses discursos: “isso só depende de você!”.
Lara é um exemplo de algo que “só depende dela”. Sete anos trabalhando com viagens internacionais de lazer, como mencionamos. Sete anos em uma agência que tinha como foco o mercado de intercâmbios de estudos e, em uma guinada administrativa, voltou-se ao turismo de lazer. O turismo tem suas fases… quando a agência decide mudar seu foco há um indicativo de que o mercado demanda novos olhares, novos saberes, novos produtos e serviços. Em 2013, no caso que vivenciamos, essa adaptação começa a ser feita. Lara vem de carona com esse movimento. Domínio do inglês, experiências internacionais, o interesse desbravador de jovens estudantes de turismo. Já dissemos: fazemos parte de uma ínfima parcela da população brasileira.
O ano de 2020 e a pandemia fecharam um mundo de possibilidades. Para aqueles que olham on the bright side of life, a pandemia abriu um mundo. Laras e Dianines puderam participar ativamente de encontros virtuais, aulas nacionais e internacionais, lives, eventos, pesquisas… puderam errar, repensar, aprender, adaptar, mudar. Assim também puderam as agências de viagens e turismo. Uma rápida pesquisa no Google denota dois cenários: notícias com dados quantitativos a respeito da queda de faturamento do setor, do fechamento de empresas e de demissões. Por outro lado, um sem número de exemplos positivos, boas ideias, manuais e guias de orientação. Há um material interessantíssimo, elaborado pelo Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas - SEBRAE, que traz em suas páginas finais frases de efeito e tons motivadores que permeiam nossos incômodos: “vai ficar parado?”, “seja você mesmo seu agente de mudanças”, “o mundo está mudando e você não pode ficar para trás!”. Ah, o empreendedor de si...
Voltemos à Lara. Assim como centenas (senão milhares) de outros agentes e agências pelo país, as primeiras semanas e meses da pandemia foram permeados por incertezas. Adicionalmente a isso, o trabalho pouco conhecido, pouco valorizado, em excesso e sem remuneração. Março, abril, maio foram meses em que toda a demanda de trabalho era pautada em remarcações e cancelamentos. Claro que os agentes de viagem e turismo sabem operar tais serviços. Por óbvio que não no volume que tomou forma com o avanço das restrições impostas pela pandemia. Para além disso, toma forma também um certo desconhecimento: cancelamentos e remarcações sem regras estabelecidas, uma vez que não se previa uma pandemia quando os serviços foram contratados.
Hoje, janeiro de 2021, as regras já estão mais bem definidas. No início de 2020 cada caso precisou ser estudado, conversado, negociado, demandando tempo e esforços até então inimagináveis. Sennett, em 1998, afirmou que:
“os líderes empresariais e os jornalistas enfatizam o mercado global e o uso de novas tecnologias como as características distintivas do capitalismo de nossa época. Isso é verdade, sim, mas não vê outra dimensão da mudança: novas maneiras de organizar o tempo, sobretudo o tempo de trabalho” (2009/1998, p. 21).
Quanto disso ficou no passado, em 1998/2009? Quanto disso é cruelmente real em 2020?
Algumas coisas precisaram ser repensadas. As redes sociais, mais do que nunca, foram fortes aliadas ao enfrentamento da pandemia. Para além do trabalho dentro de casa, o marketing digital foca (ainda mais) no indivíduo. Há inúmeros relatos de agentes de viagens que perceberam, em 2020, que ao expor suas viagens pessoais, suas histórias, suas experiências, angariavam mais curtidas, mais comentários, mais engajamento - palavrinha pouco conhecida até então. Surgem as dicas de viagem em casa, mais uma demanda de trabalho: buscar informações atuais, interessantes, imagens vívidas. Salários reduzidos, cargas horárias não condizentes com a demanda de trabalho, comissões - que compõem grande parte da renda de um agente de viagens - inexistentes, e o espectro do insucesso.
Passaram-se alguns meses e o turismo começa a ser retomado no país. O enfoque nas viagens curtas de carro, mais contato com natureza, turismo de aventura, experiências mais individuais. E as diversas Laras, que sabiam com mais exatidão a localização dos países da Europa e das capitais dos Estados Unidos, do que das cidades do Brasil, precisaram aprender a vender turismo nacional. Somos ensinados que quanto mais aprendemos, mais completos profissionais nós somos. Dessa forma, no auge da necessidade de ver algo bom nessa situação toda, somos capazes de pensar: pelo menos seremos profissionais mais completos passando por tudo isso!
Que nova imagem é essa, de um profissional/trabalhador completo, capaz, que transcende todos os problemas e obstáculos e consegue emergir positivamente em meio às disrupturas sociais? Quais são as “condições estruturais nas quais os indivíduos estão inseridos” que tornam possível “manter sua vitalidade mesmo quando claramente se mostram incapazes de explicar de modo consistente e coerente a heterogeneidade de fatores que configuram as realidades sociais”? (Barbosa, 2011, p. 121). Quando afirmamos que “foi preciso nos adaptar” não pensamos, ou pensamos muito pouco, a respeito da posição privilegiada que ocupamos. Das estruturas que nos sustentam, que nos permitem dispor de mais possibilidades, de mais caminhos, de mais escolhas. E, assim como permitem, também impõem.
Há uma imposição para que o indivíduo seja seu próprio investimento/investidor (Cf. Foucault, 2008/1979). Para além do trabalho como conduta econômica, já em pauta há algum tempo, tomam forma novas maneiras de uma dita auto doutrinação individual (Cf. Sennett, 2009/1989), com foco em determinada conduta e não outra, porque em meio a problemas, questões, dificuldades, não é permitido não-tentar. E se nós não quisermos nos arriscar tanto? E se nós quisermos dar alguns passos para trás? E se nós quisermos diminuir o ritmo de trabalho, o tamanho da nossa empresa? E se nós não quisermos nos sujeitar a condições de trabalhos precárias maquiadas pelo discurso da superação, adaptação?
É assim no mundo do trabalho, atividade dignificante capaz de conceder utilidade e função aos indivíduos, sempre circunscritos a uma pergunta tão ampla: o que você faz? É assim no mundo do turismo, que se fantasia de atividade ética e responsável, que se sustenta no ideal imaginário da realização dos sonhos mas que está atrelada à mesma lógica imposta pelo capitalismo contemporâneo. É assim nas nossas relações sociais - no trabalho, na família, nas amizades, no amor -, em que arrumamos justificativas para o injustificável quando somos questionados, cobrados, quando somos depositados e depositamos expectativas pelo/no outro, amparando-nos no discurso do homem como ser social. É assim no lazer, cada vez menos uma vivência de livre escolha e mais uma ocupação obrigatória cronometrada e quantificada.
Mais uma vez, como já mencionamos no início desse texto, falamos de um posicionamento de extremo privilégio. Talvez nem Lara nem Dianine realmente precisassem se adaptar, talvez pudéssemos esperar a pandemia passar no conforto de nossas casas, contando com a ajuda de nossas famílias, de nossos amigos. Talvez tivéssemos outras alternativas, mas que nem nos pareciam realmente alternativas. As formas como governamos nossos próprios corpos e existências divergem brutalmente de outros tantos, mas ainda assim acabamos também por estar submersas nas mesmas redes de relações e sentidos que moldam visões de mundo e indicam os próximos passos.
O mundo social, o capitalismo moderno, o Estado, a sociedade. Formas de agir, pensar e sentir que são estruturais e estruturantes impostas aos indivíduos, orientando nossas possibilidades, nossas escolhas. Quais são as escolhas que realmente temos? E se quiséssemos, simplesmente, não escolher?
Referências:
Barbosa, A. M. S. (2011). Empreendedor de si mesmo e a flexibilização no mundo do trabalho. Rev. Sociol. Polít., 19(38), p. 121-140.
Foucault, M. (2008/1979). Nascimento da biopolítica: curso dado no Collège de France (1978-1979). São Paulo: Martins Fontes. (Coleção tópicos)
Sennett, R. (2009/1998). A corrosão do caráter: as consequências pessoais do trabalho no novo capitalismo. Rio de Janeiro: Record.
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