Mariciana Zorzi | Labor Movens/UDELAR
O território de Montevidéu, capital do Uruguai, está organizado em oito municípios que agrupam diferentes bairros da cidade, como resultado da Lei de Descentralização e Participação Cidadã (Lei nº 18.567). Essa normativa, promulgada em 2009, estabeleceu a criação de municípios em todo o país, com o objetivo de aproximar a gestão pública da população e promover uma maior participação cidadã na tomada de decisões. Cada município conta com um ou mais Centros Comunais Zonais (CCZ) e com Conselhos Comunitários, instâncias fundamentais para a participação cidadã e a gestão local. Essas estruturas permitem que as pessoas se envolvam ativamente no planejamento e desenvolvimento de iniciativas que beneficiem suas comunidades, fortalecendo a democracia de base.
O Município F de Montevidéu, composto por bairros como Villa García, Manga, Bañados de Carrasco, Ituzaingó, Villa Española e Punta de Rieles, entre outros, traz em sua memória coletiva um forte vínculo com seu passado industrial. As fábricas, que em outros tempos foram o motor econômico da região, deixaram marcas na paisagem e na vida cotidiana de seus habitantes. Em bairros como Maroñas e Villa Española, as chaminés, galpões e oficinas ainda evocam as épocas de intensa atividade laboral, onde a classe trabalhadora construiu não apenas uma economia local, mas também uma forte tradição de luta e organização operária. Esse legado segue presente nos relatos da comunidade, que vê nesses espaços uma oportunidade para refletir sobre o passado e ressignificar seu papel no presente.
Um projeto sobre a memória do trabalho
Ao longo dos anos, a Universidad de la República (Udelar) tem desenvolvido uma articulação com a comunidade local, materializada em diferentes projetos que têm sido fundamentais para a pesquisa, documentação e difusão da memória e do patrimônio do Município F (Paulo e Toscano, 2018). Nesse contexto, nasceu o projeto Memória do trabalho: transformações, marcos e organizações no Município F de Montevidéu, desenvolvido pela Comissão de Trabalho e Desenvolvimento Produtivo do Conselho Comunitário 9 do Município F e por uma equipe de docentes e estudantes da Faculdade de Ciências Sociais da Udelar. A proposta, apresentada em 2020, foi financiada pela Comissão Setorial de Extensão e Atividades no Meio (CSEAM/Udelar).
O projeto começou com uma fase de pesquisa, centrada em documentar as formas históricas de trabalho produtivo no Município F e em resgatar marcos-chave da história sindical por meio das vozes de seus protagonistas. Como resultado desse trabalho, foi desenhado um percurso que conecta alguns dos locais mais emblemáticos da história do trabalho e da luta operária na região. Com o tempo, a proposta foi enriquecida com novos materiais e com a colaboração ativa de estudantes, docentes e diversos atores, ampliando seu impacto e alcance.
A atividade é totalmente gratuita para os participantes e ocorre pelo menos uma vez por ano, geralmente no marco do Dia do Patrimônio (outubro), no mês da indústria (novembro) ou em outras datas significativas, adaptando-se em cada edição à disponibilidade dos locais e ao tempo destinado ao percurso. Cada itinerário é cuidadosamente planejado para destacar diferentes aspectos da memória do trabalho, incorporando relatos, visitas a locais emblemáticos e reflexões sobre as transformações que marcaram a vida laboral no município.
O percurso, que normalmente é realizado de ônibus, conta com o apoio da Intendencia de Montevidéu e do Município F. Sua organização é liderada por integrantes da Comissão de Trabalho e Desenvolvimento Produtivo do Conselho Comunitário 9, a maioria ex-trabalhadores de fábricas e/ou pessoas com algum vínculo com o movimento sindical. Além disso, conta com o apoio das assistentes sociais da Área Social do CCZ 9. Durante o trajeto, a equipe explica a história de cada bairro e de algumas das antigas fábricas, como a Indústria Lanera de Uruguay (ILDU), Sociedade Anônima de Indústrias Laneras (SADIL) e SUITEX, e apresenta os locais a serem visitados.
Essa iniciativa não apenas valoriza a história local, mas também fortalece os laços comunitários e promove uma visão crítica sobre as mudanças nas dinâmicas laborais e seu impacto na vida cotidiana. Além disso, consolidou-se como uma proposta de passeio acessível e interessante, inclusive para os próprios moradores do município.
Curtume: o símbolo da indústria do couro
O percurso começa no curtume Sistemcuer, estabelecimento onde, por meio do tratamento de peles de animais, são produzidos couros com diversas aplicações. Esse curtume é um dos poucos que ainda estão em funcionamento na capital e representa a indústria do couro que floresceu em meados do século XX. Durante as décadas de auge, os curtumes foram fundamentais para a economia local, proporcionando emprego a centenas de famílias. No entanto, as e os trabalhadores enfrentavam jornadas longas, exposição a produtos químicos e técnicas artesanais exaustivas e perigosas.
Durante a visita, os anfitriões explicam o atual processo de curtimento do couro, desde a chegada das peles até a produção final. O característico cheiro do curtume, junto com as explicações, costuma evocar nos participantes lembranças do cotidiano do bairro, do ofício e das lutas por melhores condições de trabalho. Os curtumes foram cenários de importantes movimentos sindicais, onde as e os trabalhadores se uniram para exigir melhores salários, segurança e direitos laborais.
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Crédito da Fotografia: Visita à curtume Sistemcuer. Imagem da Área Social do CCZ 9 - Município F.
FUNSA: ícone da resistência operária
O próximo destino é a antiga Fábrica Uruguaia de Pneumáticos Sociedade Anônima (FUNSA), localizada no bairro Villa Española, um marco da resistência operária no Uruguai. Fundada em 1935, a FUNSA tornou-se o coração da luta sindical. Aqui, os trabalhadores protagonizaram greves e ocupações que repercutiram em todo o país, destacando-se por sua capacidade de organização e firmeza na defesa de seus direitos. No seu auge, a FUNSA não era apenas um pilar da indústria manufatureira de produtos de borracha (principalmente pneus), mas também um bastião da militância operária (Sabini, 2018).
Durante a visita às instalações da FUNSA, os participantes podem percorrer o exterior da antiga fábrica e ouvir os relatos de trabalhadores e ativistas sindicais, que compartilham histórias de greves que paralisaram a produção e chamaram a atenção nacional. Atualmente, os galpões da fábrica são alugados como depósitos e também abrigam a Funsacoop, uma cooperativa fundada há 20 anos por ex-trabalhadores da FUNSA, que continua ativa na produção de luvas de látex.
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Crédito da Fotografia: Interior da FUNSA. Imagem de Mariciana Zorzi.
Centro Cultural Las Chimeneas: um farol de cultura
A próxima parada do percurso é o Centro Cultural Las Chimeneas, localizado no Bairro Cooperativo Nuevo Amanecer (Mesa 1), um complexo habitacional composto por cinco cooperativas de moradia baseadas na autogestão e na ajuda mútua. O nome do centro cultural homenageia as chaminés que, durante anos, fizeram parte da paisagem urbana, evocando a memória industrial do bairro. Sua fachada se destaca por um impressionante mural do artista uruguaio Vladimir Rivoira, que retrata trabalhadores em pleno processo de fabricação de tijolos na antiga olaria Andrés Deus S.A. Em algumas ocasiões, as e os visitantes têm a oportunidade de interagir com o próprio artista, que compartilha detalhes sobre o processo criativo e o simbolismo da obra.
O Centro Cultural Las Chimeneas é um espaço de atividades artísticas e sociais que promovem a identidade local, a participação cidadã e a reflexão coletiva. Por meio de oficinas, exposições, horta comunitária e eventos, esse espaço se consolidou como um ponto de encontro para a comunidade, onde se fomenta tanto a criatividade quanto o reconhecimento do valor histórico e social do trabalho na região.
Entre as propostas desenvolvidas no centro estão aulas de dança, teatro, música e exposições artísticas. O local também é utilizado para ensaios de murgas e de comparsas de candombe. As e os moradores do bairro organizam e planejam projetos para ativar e recuperar espaços do passado, como as antigas fábricas hoje abandonadas.
Neste ponto do percurso, é realizada uma rodada de apresentação e reflexão sobre as experiências vividas nos lugares visitados.
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Crédito da Fotografia: Parte do mural na fachada do Centro Cultural Las Chimeneas. Imagem de Mariciana Zorzi.
Praça da Greve Geral: um lugar carregado de simbolismo e memória
O percurso culmina na Praça da Greve Geral, localizada em um ponto estratégico da cidade, o Serviço Intercambiador Belloni, por onde passam diversas linhas de transporte urbano.
Neste local encontra-se um mural, originalmente concebido pelo artista Eduardo Pereira, que homenageia a resistência operária durante o golpe de Estado de 27 de junho de 1973. A praça foi inaugurada em 2003 para lembrar os 30 anos da greve geral organizada pela então Convenção Nacional de Trabalhadores (CNT).
Durante a construção do Intercambiador Belloni, foi necessário demolir o mural original, com o compromisso da Intendencia de Montevidéu de reconstruí-lo após a conclusão das obras. A réplica, com 40 metros de comprimento, encontra-se agora a alguns metros do solo e foi realizada por meio de uma chamada pública que envolveu artistas plásticos, moradores e moradoras. A reconstrução ficou a cargo da artista Andrea Basso e dos artistas Jorge Gutiérrez e Vladimir Rivoira, sendo realizada entre julho e agosto de 2017.
A praça se transformou em um espaço de reflexão e reivindicação, onde são realizados atos e comemorações que mantêm viva a chama da resistência.
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Crédito da Fotografia: Mural na Praça da Greve Geral. Imagem de Mariciana Zorzi.
Reflexões sobre o passado, o presente e a justiça social
Este percurso não revive apenas histórias do passado, mas também abre um espaço para refletir sobre os desafios atuais do mundo do trabalho e a importância de manter viva a memória. Cada parada, com seus relatos sobre o trabalho e a resistência, é um testemunho da luta dos trabalhadores e trabalhadoras, lembrando-nos de que os direitos trabalhistas são conquistas fruto de esforços coletivos e contínuos.
A colaboração entre a comunidade e a academia ocupa um lugar central nesta iniciativa. Por meio dos programas de extensão da UDELAR, essas histórias foram documentadas e divulgadas, contribuindo para que as experiências e lutas da classe trabalhadora do Município F sejam valorizadas e preservadas. Além disso, essas iniciativas oferecem aos estudantes universitários uma oportunidade de aprendizado prático e de contribuição social.
Percorrer esses locais é, essencialmente, uma homenagem àqueles que lutaram pelos direitos trabalhistas que hoje desfrutamos. Além do valor educacional, esta experiência cuida de cada detalhe: desde o atendimento personalizado aos idosos que participam até os lanches oferecidos ao final do percurso. Em resumo, este percurso é um exemplo concreto de como é possível, por meio da articulação institucional e da participação social, desenvolver propostas de lazer e turismo que combinam aprendizado, reflexão e satisfação.
REFERÊNCIAS
Paulo, L.; Toscano, A. (2018). Lo Patrimonial por-venir. Comisión Sectorial de Extensión y Actividades en el Medio, Universidad de la República del Uruguay.
Sabini, S. (2018). Del mercado cerrado a la apertura, Historia de la Fábrica Uruguaya de Neumáticos S. A. (1935-2002). Tesis de Posgrado en Historia Económica, Universidad de la República del Uruguay, Montevideo.
Ley N° 18567. (2009). Ley 18567 de 2009. Recuperado de: https://www.impo.com.uy/bases/leyes-originales/18567-2009
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