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Masterchef e a glamourização do sofrimento na cozinha

Atualizado: 3 de fev.

Bianca Briguglio | Labor Movens



Entre a infinidade de programas televisivos que tratam de culinária e gastronomia, Masterchef talvez seja a franquia que persiste há mais tempo na televisão brasileira. No ar há quase uma década, o programa é exibido pela Rede Bandeirantes e, recentemente, encerrou mais uma de suas temporadas com profissionais.


Desde minha pesquisa sobre o trabalho em cozinhas profissionais em 2015, desisti de assistir a esses reality shows culinários por não concordar com o tipo de “entretenimento” que promovem: pessoas chorando, se desesperando, se queimando, produzindo comida sob pressão e nervosismo desnecessários, comentários maldosos dos jurados, intrigas entre competidores... sem contar os gritos de “vamos, gente!”, “o tempo tá acabando”, “faltam 10 segundos”, que criam um clima de tensão e ansiedade permanente, o que é bem desagradável.


Mas uma participante muito especial da edição de profissionais deste ano me fez retornar ao programa. Cintia Sanchez é cozinheira e chef, toca seu próprio negócio de alimentação, o Manje Culinária, e trabalha junto aos movimentos sociais da cidade de São Paulo para levar comida para pessoas em situação de rua, sobretudo na região conhecida como Cracolândia. Eu a conheci há alguns anos e aprendi muito com ela sobre os desafios que uma mulher negra enfrenta para trabalhar no segmento de alimentação.


Cíntia teve uma trajetória marcante no programa, por conta de seu temperamento, seus comportamentos e por um episódio específico, o qual discutirei neste texto. Mas comecemos do início.


Nessa edição dedicada aos profissionais, de um total de 14 competidores, três mulheres negras se apresentaram. Já no primeiro episódio duas foram eliminadas e restou apenas Cíntia. No terceiro episódio, os participantes enfrentaram uma “prova de serviço”, no qual deveriam se organizar para preparar um menu desenvolvido por um dos chefs jurados, que seria o chefe do serviço, com um tempo bem curto para mise-en-place. O menu dessa prova foi criado pelo chef francês Erik Jacquin e servido a convidados no estúdio do programa.


Fonte: https://www.instagram.com/chefcintiasanchez/

O chef apresentou os pratos, os participantes degustaram, “escolheram” o preparo que iriam fazer e a prova começou. Cíntia ficou com uma entrada: um preparo com creme azedo, gema de ovo e caviar, cujo charme residia precisamente no fato de ser servida dentro do próprio ovo. Ela utilizou um instrumento que cortava com grande precisão. Entretanto, para servir qualquer coisa dentro de ovo, é necessário limpá-lo muito bem, pois o odor tende a ser repulsivo e pode contaminar o sabor da comida. Ela abriu os ovos, esvaziou-os e lavou-os. Em seguida, removeu cuidadosamente a fina película que reveste o interior da casca e que tende a deixar esse cheiro, conforme ela mesma explica na “entrevista” do programa. Em uma prova com tempo curto, esse processo é muito mais complicado, porque a casca é frágil, e qualquer rachadura implica em reiniciar o processo do zero.


Ao final da prova, os ovos de Cíntia foram bem avaliados, mas o chef Jacquin decidiu que ela havia trabalhado pouco, pois uma hora e meia foi muito tempo para que ela apresentasse “apenas” 16 ovos completos e recheados. Ela foi, portanto, para a prova de eliminação.


Cíntia responde aos chefs que aceitou ficar com os ovos para não criar problemas para a equipe, mas que ela deveria ter batido o pé e brigado para ficar responsável por outro preparo, algo que teria mais destaque no serviço.


Os outros participantes se chocaram. Eles entenderam sua fala como um ataque, como se ela estivesse se eximindo de responsabilidade e culpando o grupo por estar na prova de eliminação. É quando Cíntia passa a ser uma “traidora”, alguém que está contra o grupo. Aqui é preciso fazer uma breve explicação sobre uma dinâmica que se observa no trabalho em cozinhas profissionais e que é muito importante para entendermos o que o Masterchef exibiu em rede nacional.


Entre os cozinheiros que trabalham juntos na mesma cozinha há um sentimento de pertencimento e o elo que os une é fundamental. Chamo isso de lealdade. A lealdade entre os cozinheiros é essencial porque a cozinha precisa funcionar de forma muito bem azeitada e coordenada. Todos precisam conhecer muito bem suas tarefas e também as dos outros, para que o trabalho se desenvolva de forma harmoniosa, da maneira correta e no tempo certo. A lealdade garante que todos se ajudem na cozinha.


Essa lealdade, entretanto, tem um lado sombrio que se expressa no tratamento destinado àqueles que não pertencem, que não fazem parte dessa grande união. Os outsiders são punidos. Essa exclusão pode se manifestar de diversas maneiras, sendo a mais perversa aquela que alguns teóricos chamam de bullying, mas que configura um tipo de assédio moral. Aqui, não é mais o chef ou o superior hierárquico que discrimina seu subordinado, mas os próprios colegas que tratam de infernizar a vida daquela pessoa. Desde sabotar preparos (aumentar o fogo da panela para a comida queimar, jogar sal, esconder insumos etc.) até inventar apelidos humilhantes, esse tipo de assédio coletivo costuma levar seu alvo a pedir demissão, mas pode ter consequências ainda mais graves, como o adoecimento psíquico e até depressão.


Como uma pessoa que trabalha com o grupo de repente não pertence mais, ou como ela cai em desgraça perante os colegas? Isso pode acontecer de várias maneiras. Pode ser uma pessoa que não goste ou não se adapte à rotina da cozinha. Pode ser uma pessoa que discute muito, que resiste, que “cria problemas”. Pode ser alguém que se incomoda com determinadas brincadeiras, que não leva certos comentários na esportiva. Pode ser que essa pessoa passe a ser chamada de “chata”, “azeda”, que não sabe brincar. Pode ser alguém que fez uma crítica ao grupo. Todas essas situações podem levar o grupo a considerar essa pessoa como alguém que está fora, que está contra, e que, portanto, não deve permanecer.


Quando Cíntia afirma que, por tentar ser “boazinha” e evitar se indispor com os outros participantes, ela se prejudicou, o grupo se sente atacado por ela. Dessa forma, ela fica contra o grupo. Os depoimentos gravados dos participantes deixam isso claro. Atacar o grupo é grave, e a pena é a exclusão. Cíntia vira um alvo: todos os outros cozinheiros querem que ela saia do programa.


Numa prova de eliminação bastante desafiadora, na qual os cozinheiros deveriam preparar três pratos com miúdos e carnes nada nobres (como cérebro e testículos), um participante designou quais carnes iriam ser preparadas por cada um, e ele declara que indicou as que considerava mais difíceis para Cíntia propositalmente.


Num momento tenso durante o preparo, o perspicaz chef Fogaça, com sua delicadeza característica, pergunta aos participantes “salvos” quem eles acham que será eliminado, e eles unanimemente nomeiam Cíntia. Alguém diz “fé no Pai que a Cíntia sai”. Os participantes que estão fazendo a prova também nomeiam Cíntia. Ela responde, afirmando não se abalar, que não está lá para fazer amigos. Mas é evidente que isso mexe com ela. Ainda mais considerando que ela já está tomada por um grande nervosismo.


A pergunta foi feita neste momento não por acaso, mas com o claro objetivo de abalar Cíntia, de atacar sua estabilidade psicológica, de deixar claro que ela não é mais bem-vinda ali. Ela mesma, falando a posteriori, relata se sentir mal ouvindo aquilo e como equilibrar-se emocionalmente naquele momento passa a ser um desafio maior do que cozinhar os três pratos em uma hora e meia. Mesmo depois de falarem que gostariam que ela saísse, os cozinheiros pedem ajuda a Cíntia, pedem que lhes dê uma parte de seus ingredientes (uma leva o tomilho, outra leva farinha), e ela dá sem nem piscar.


A prova termina. Uma participante é eliminada porque não cozinhou com o ingrediente obrigatório e outro porque não fez um bom prato. Cíntia ganha a prova. Sobe para o mezzanino com os “salvos” e os cumprimenta a todos. Afasta-se, segura o gradil com as duas mãos e começa a chorar.


Quem já passou por uma situação assim, sentindo que todos os seus colegas estão contra você, agindo intencionalmente para que você queira sair, entende esse choro. Em sua entrevista, emocionada, Cíntia fala sobre as cozinheiras invisíveis, as merendeiras, as mulheres negras que há séculos cozinham sem obter nenhum reconhecimento e se coloca como sua representante.


Na semana seguinte, novamente uma prova de serviço, na qual os participantes se dividem em duas equipes para servir uma grande quantidade de refeições (200, neste caso), no estacionamento de uma mineradora, isto é, fora da cozinha. Cíntia, vencedora da prova de eliminação, vira capitã. Uma das cozinheiras de sua equipe, na entrevista, diz que preferia estar no outro grupo, que não queria trabalhar com ela. Os comentários nas entrevistas são os de que ela não vai dar conta, que não tem controle emocional, que está gritando muito e não sabe ser líder.


Os dois times vão mal na prova, mas é o time de Cíntia que vai para a eliminação. Os trabalhadores que foram servidos votaram na refeição vencedora. Novamente, os participantes são perguntados sobre quem será eliminado e ela é apontada por todos. E ela é eliminada, de fato, após uma prova que pareceu um suplício, preparando charcutaria de peixe. Aproxima-se dos chefs, agradece e sai com o punho direito levantado, um gesto que simboliza que a luta continua.


Fonte: https://www.instagram.com/chefcintiasanchez/

Nas redes sociais, houve muita comoção. É impossível não sentir compaixão pela única mulher negra que ainda permanecia no programa, que claramente estava dando o melhor de si, lutando para manter algum controle sobre suas emoções diante das câmeras e dos jurados, sendo tratada e retratada sem nenhuma empatia. Pelo contrário, ela foi vilanizada, apresentada como grosseira, descontrolada.


O Masterchef promove a glamourização do assédio e do sofrimento, e isso é algo essencial na própria dinâmica e identidade do programa. Dar um tempo impossível para que as pessoas preparem um prato, notar as fragilidades dos participantes e explorá-las para fazê-los chorar ou se descontrolar, promover picuinhas entre eles, criar narrativas de bonzinhos e vilões na edição, isso é característico. Sempre foi assim. O que esse episódio nos permite vislumbrar, entretanto, é como tal dinâmica, tão difícil de ser vista por alguém que não faz parte do universo das cozinhas, se realiza. Como esse comportamento de grupo no qual uma pessoa é excluída fortalece o vínculo entre os demais. E como isso pode ser cruel e doloroso para quem é excluído.


Evidentemente, os participantes têm o direito de não gostar de alguém ou de achar que tal pessoa deve ser eliminada do programa. Mas a própria produção e os jurados agiram para tornar mais dramáticos os momentos delicados, aproveitando-se das emoções e do nervosismo de Cíntia para fragilizá-la ainda mais, perguntando quem deveria ser eliminado no meio da prova, quando ela já parecia demasiadamente tensa. Assim como acontece nas cozinhas, as chefias também costumam ser cúmplices desses comportamentos, utilizando-se desses conflitos para aumentar produtividade e garantindo que, no fim das contas, a vítima vá embora e os assediadores permaneçam impunes.


O desconforto que isso causa nos espectadores corresponde ao desconforto que sentimos diante de uma injustiça que, nesse caso, se expressa sobre uma mulher negra, que tem uma trajetória e um discurso dissonante dos demais participantes. São também as mulheres negras que mais sofrem com assédio moral e sexual nas cozinhas, assim como em muitos outros trabalhos. São elas as mais penalizadas, que precisam constantemente estar provando que são tão merecedoras quanto os outros de ocuparem os lugares que ocupam. É o trabalho delas que está constantemente sendo avaliado rigorosamente, com muito menos tolerância e benevolência.


Esperar esse tipo de sensibilidade da Rede Bandeirantes, entretanto, seria muita inocência. Ainda mais neste programa, que já foi palco de machismos e que não cansa de retratar mulheres como emocionalmente descontroladas, mesmo quando são os homens que saem batendo na mesa e falando besteira.


O Masterchef naturaliza comportamentos de assédio que deveríamos combater, como a humilhação e as piadinhas machistas e homofóbicas, reproduzindo violências que causam sofrimento e até adoecimento. Quem já trabalhou em um ambiente assim sabe o peso que recai sobre a saúde mental. Esse programa retrata como heróis chefs com históricos bem complicados, tanto na questão do assédio moral e sexual, como cumprimento de leis trabalhistas brasileiras.


Mas Cíntia é maior que isso. Ela é maior que esses episódios, ela é maior que a violência, ela é maior que o Masterchef. A participação dela escancarou a opressão e o assédio moral que está presente em muitas cozinhas para milhões de brasileiros. Mostrou também a força e a determinação de uma mulher negra que conhece sua história e seu potencial, que foi fiel a si mesma, que agiu de maneira íntegra e que resistiu mais do que muita gente sob condições adversas.


Que a história de Cíntia nos ensine a ter mais empatia e compaixão, mais solidariedade, mais respeito e mais atenção ao que se apresenta como entretenimento.

Fonte: https://www.instagram.com/chefcintiasanchez/

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1 Comment


Giovana Ferro lima
Giovana Ferro lima
Oct 09

De saber que meu professor de gastronomia pediu para assistirmos esses programas e eu quando assisti dóis apenas já não quis mais.

Relatei a ele o ápice de preconceito que rola por lá.

Ele muito simplório, me fala calmamente.

Você foi rápida para perceber isso

Mas mal sabe ele que já lidero a cozinha de um restaurante.

Única muçulmana onde moro e que lidera com toda a cautela do mundo.

Pois já sofri preconceito também.

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