César Roberto Castro Chaves | UFMA
Partindo de resultados de pesquisa realizada no Doutorado em Políticas Públicas da Universidade Federal do Maranhão (PPGPP/UFMA), no período de 2018 a 2023, intitulada “Políticas de revitalização do Centro Histórico de São Luís-MA e lutas pelo direito à cidade: a não efetividade dos programas de habitação e a permanência das formas precárias de moradia”, constatou-se que grande parte das pessoas que vivem precariamente nas ocupações irregulares, nos cortiços, em empreendimentos habitacionais de interesse social, e até mesmo nas moradias de propriedade privada, são trabalhadores e trabalhadoras informais que formam o “novo proletariado de serviços” (Antunes, 2018) que atua no centro da cidade.
O novo proletariado de serviços é formado por uma diversa, complexa e fragmentada classe trabalhadora, que difere da concepção clássica de proletariado, forjada no contexto industrial do século XIX e início do século XX.
[...] é composto por uma massa de trabalhadores que não tem organização sindical efetiva (por vezes nenhuma). É extremamente fragmentada, intermitente, terceirizada, composta em grande parte por trabalhadores que são imigrantes, negros, jovens sem grandes perspectivas de vida, mesmo com elevada escolaridade em alguns casos, mas que trabalham de forma precarizada ou não têm emprego. São trabalhadores e trabalhadoras que, em geral, não têm consciência de classe “em si” e “para si”. Por serem empreendedores, pensam que fazem parte da classe média, quando, na verdade, são proletários de serviços (Chaves, 2020, p. 129).
A caracterização socioeconômica dos moradores, realizada durante a pesquisa, revelou um quadro diverso de ocupações precárias exercidas pela comunidade do Centro Histórico de São Luís (CHSL): camelôs, guardadores de veículos, garçons, atendentes de bar, recepcionistas de hotéis e pousadas, cozinheiros, vendedores ambulantes de produtos diversos e fazedores da rica cultura popular maranhense, que vivem em prédios históricos com 2 (dois) ou 3 (três) pavimentos, em péssimo estado de conservação, sem condições dignas de moradia. Por se tratar de moradias irregulares, em geral, ocupações e cortiços, vivem sob a insegurança da posse, em meio ao risco iminente de remoção (Chaves, 2023).
Figura 1 - Interior de uma ocupação na Rua do Giz, CHSL
Fonte: Elaborado pelo próprio autor (2022)
No que tange aos moradores/trabalhadores precarizados do CHSL, estes são duplamente invisíveis aos olhos da sociedade e dos consumidores solváveis da cultura material e imaterial local. Sobrevivem da venda de produtos diversos: água mineral, cerveja, refrigerante, cachorro-quente, hambúrguer, churrasquinho, sorvetes, drinks e outros produtos consumidos pelos frequentadores das bucólicas ruas do centro histórico da cidade.
Figura 2 - Vendedores ambulantes do Centro Histórico de São Luís
No entanto, quem compra um desses produtos no mercado cultural e turístico local, não sabe que essas pessoas são, além de residentes e trabalhadores em condições precárias, pessoas profundamente identificadas com CHSL, ativas na luta social em defesa de prerrogativas sociais a eles negadas, embora garantidas constitucionalmente (acesso à educação, à saúde, à alimentação, ao trabalho, à moradia, ao lazer, à segurança, entre outras). Por isso, lutam de diversas formas pelo direito de viver e trabalhar, mais precisamente no centro da cidade, mesmo de maneira informal.
Poucos sabem, turistas ou moradores locais, que Dona De Jesus, uma vendedora informal de 66 anos na calçada de um prédio público em breve entregue a um grupo hoteleiro[1], é uma líder comunitária influente. Ela é vice-presidente da União de Moradores do Centro Histórico de São Luís, líder do movimento por moradia social e dos vendedores ambulantes, e a figura principal do coletivo "Por Elas Empoderadas", que defende os direitos das trabalhadoras sexuais do Maranhão. Adicionalmente, Dona De Jesus é diretora da Escola de Samba Flor do Samba e do Grupo de Bumba-meu-boi Lendas e Magias do Centro Histórico, que apoia jovens e adolescentes em situação de vulnerabilidade.
Figura 3 - Índia do Boi Lendas e Magias
Fonte: Boi Lendas e Magias beneficia jovens em situação de vulnerabilidade social. Disponível em: http://al.ma.leg.br/noticias/43877
Dona De Jesus é uma personagem que ilustra a realidade dos invisíveis moradores-trabalhadores do CHSL, que se diferenciam dos demais trabalhadores informais da cidade por empreenderem a “luta de classes na cidade” (Maricato, 2015) em diversas dimensões, como: moradia, trabalho e cultura. Além de trabalhadores informais, são pessoas que produzem Cultura e conferem vida e função social ao rico acervo urbanístico tombado, formado por ruas e prédios históricos que datam dos séculos XVIII, XIX e primeiras décadas do século XX, embora as decisões judiciais quase sempre os desfavoreçam, reafirmando o direito de propriedade para aqueles que cometem crimes de abandono de imóveis.
Figura 4 - Matéria do Jornal O Imparcial com Dona De Jesus
Fonte: https://oimparcial.com.br/noticias/2017/10/ex-prostituta-vira-militante-de-causas-feministas/
O casario colonial português, abandonado pelas classes mais ricas e tombado como patrimônio histórico em 1974, reconhecido como patrimônio da humanidade em 1997, se tornou fortemente povoado por classes populares no meio do século XX. Isso ocorreu devido à concentração de oportunidades de trabalho e infraestrutura essencial no centro da cidade, vital para a sobrevivência das camadas mais pobres da sociedade. Para essas pessoas, é muito caro, e até mesmo perigoso, viver nas franjas da cidade. Por isso, empreendem a luta diária pela sua sobrevivência no centro de São Luís.
Figura 5 - Centro Histórico de São Luís
Para as classes populares, sobretudo a massa sobrante de trabalhadores que busca na informalidade, ideologicamente falseada de empreendedorismo, alternativas de emprego; e nas ocupações informais do centro da cidade, local para moradia, é muito caro viver nas periferias, onde há:
[…] dificuldade de acesso aos serviços de infraestrutura urbana (transporte precário, saneamento deficiente, drenagem inexistente, difícil acesso aos serviços de saúde, educação, cultura e creches, maior exposição à ocorrência de enchentes e desabamentos) somam-se menores oportunidades de emprego, maior exposição à violência (marginal ou policial), difícil acesso à justiça oficial, difícil acesso ao lazer, discriminação racial. A exclusão é um todo: social, econômica, ambiental, jurídica e cultural (MARICATO, 2003, p. 152).
Ao residir em edifícios mal conservados, às vezes correndo o risco de desabamento, os habitantes/profissionais do Turismo e da Cultura se submetem a condições degradantes de sobrevivência, mas por extrema necessidade. Além do risco de vida, convivem diariamente com tentativas de remoção forçada, em meio a planos e programas de revitalização urbana que, desde a década de 1980, de forma direta ou indireta, promovem a valorização econômica e a especulação imobiliária no CHSL, beneficiando proprietários privados em detrimento das famílias ocupantes.
A implantação em curso do Resort Vila Galé, constitui um marco, embora ainda não concretizado, sem precedentes nas políticas locais de revitalização urbana, que, sem dúvida alguma, irá acelerar o processo de gentrificação e acentuar exclusão socioespacial no CHSL, fazendo surgir a seguinte questão: será que o mercado imobiliário de médio e alto padrão enfim irá responder aos convites do Estado e apropriar-se do valioso estoque urbanístico e cultural do Centro Histórico de São Luís? Enquanto não há resposta para a urgente e necessária questão, entende-se que o debate deve ser suscitado.
Referências
Antunes, R. (2018). O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era digital. São Paulo: Boitempo.
Chaves, R. C. C. (2020). O novo proletariado de serviços: análise da precarização do trabalho no setor do turismo. In: Jefferson Lorencini Gazoni; Iara Lucia Gomes Brasileiro; Lívia Barros Wiesinieski. (Org.). O novo proletariado de serviços: análise da precarização do trabalho no setor do turismo. 1 ed. Goiânia - Goiás: Editora Espaço Acadêmico, 2020, v. p. 124-137.
César, R. C. C. (2023) Políticas de Revitalização do Centro Histórico De São Luís - MA e Lutas Pelo Direito à Cidade: A não efetividade dos programas de habitação e a permanência das formas precárias de moradia. (Tese) Doutorado em Políticas Públicas da Universidade Federal do Maranhão - UFMA. Disponível em: https://tedebc.ufma.br/jspui/handle/tede/4800.
Maricato, H. (2003). Metrópole, legislação e desigualdade. Estudos Avançados, vol. 17 no.48 São Paulo May/Aug.
Maricato, H. (2015). Para entender a crise urbana. Expressão popular: São Paulo.
[1] Desde 2022, comerciantes locais, trabalhadores informais, fazedores da cultura popular maranhense e ativistas em defesa do direito à cidade, demonstraram receito e preocupação a com aceleração do processo de gentrificação que o empreendido Vila Galé poderia causar ao Centro Histórico de São Luís. Contudo, recentemente, representantes do grupo empresarial português se reuniram com o Prefeito de São Luís, secretários do executivo municipal, políticos, empresários e autoridades locais para tratar de questões relativas à implantação do empreendimento a ser realizado, de maneira absurdamente questionável, em 3 (três grandes e importantes prédios públicos estaduais no coração do CHSL, sem qualquer debate com sociedade. Para mais informações, consultar o portal da Prefeitura de São Luís em:
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