Fernanda Costa da Silva
O mais próximo que havia chegado de uma camareira vinha de alguns relatos da minha mãe, a qual, entre várias ocupações iniciadas ainda na pré-adolescência, atuou como empregada doméstica. Na graduação, não voltei meus interesses à hotelaria e, como consequência, não havia refletido sobre a rotina de uma camareira. Até que após mais de dez anos após formada, a partir de uma palestra e de uma publicação (Sesc, 2017) voltadas às funções das mulheres na hospitalidade, comecei a pensar em como reproduzíamos os estereótipos de gênero também nessa dimensão.
Cheguei em agosto de 2024 deparando-me com: “Professora, e quando a gente vai poder empurrar o carrinho, mexer nos produtos... e vocês vão dar pra gente assim... uma lista de empregadores?”, me perguntou “M” e “Eu moro aqui perto, pela rua mesmo”, me disse “R”.
Já no primeiro dia de aula da turma da manhã, do Programa Mulheres Mil[1] (MM), essas foram algumas das colocações de estudantes. Quando fui chamada pelo Colégio Pedro II (CPII) para assumir as turmas, passou um filme na minha cabeça: eu retornaria, quase vinte anos depois, a um tipo de projeto com o qual iniciei minha carreira. A diferença é que agora as aulas seriam não apenas para pessoas em situação de vulnerabilidade social, mas haveria mais um recorte importante: mulheres.
No início dos anos 2000, recém formada, entendi que poderia atuar com educação no turismo, ao mesmo tempo em que poderia e deveria popularizar o tema para pessoas com menos acesso formal a ele. Selecionada para ser Orientadora de Aprendizagem do “Brasil, Meu Negócio é Turismo” no interior do RS, no início dos anos 2000, passei meses com turmas diversas, não apenas ensinando, mas, sobretudo, aprendendo sobre turismo e sobre humanidade.
Já em 2024, meu primeiro dia de aula no Mulheres Mil mostrou que havia emergências pelo emprego, pela educação, pela sociabilidade, pela atenção e pela segurança. “M” tinha pressa: de empurrar o carrinho para pegar a prática e enviar logo seu currículo para o maior número de hotéis possível. “R”, mesmo não tendo tanta perspectiva de emprego, também tinha pressa: de passar a maior parte do seu tempo longe da rua, lugar de sua moradia, mas, também, espaço em que ficava suscetível a (mais) violências.
Mais do que ensinar, (re)aprendi em 2024, enquanto professora do curso de Camareira em Meios de Hospedagem, sobre a importância do ensino popular de turismo. Ao longo da construção das aulas e dos laços de confiança, surgiam perguntas como “e como a gente faz pra se dirigir a um cliente que é homem, mas que gosta de se vestir de mulher?”. Dúvidas “batidas” em um ambiente acadêmico, mas que ali se apresentavam como curiosidades genuínas, para diferentes gerações de estudantes.
Para além do desafio de montar as aulas e de ministrar os conteúdos, surgiram outros: manter as alunas acordadas em aula (porque vinham já cansadas, de longe); ensinar a turma a estudar (como ler, como se organizar para as avaliações, como escrever frases completas); não tomar partido nos atritos (em uma turma composta por mulheres nascidas entre 1955 e 2004); saber escutar (sobre o tiroteio na comunidade, sobre o trânsito que não andou por conta da operação policial...); e conseguir chegar em casa e buscar se recompor para o dia seguinte, sem sucumbir à tristeza do cotidiano difícil daquelas mulheres, muitas das quais estavam ali, sobretudo, pela bolsa de estudos que receberiam ao final do mês.
Em meio às dificuldades, essas estudantes foram as motivadoras para que eu pudesse notar as belezas do processo de ensino popular do turismo. Foi assim no caso de “S”, que em virtude de problemas com o filho e por conta de “bicos” que assumia ao longo das semanas, faltava a diversas aulas. Ainda assim, combinamos que ela faria recuperações de avaliações, para não perder o curso. Até que um dia, ao receber uma das avaliações, “S” olhou incrédula para o papel e disse: “dez, professora?!”. Eu sequer lembrava que ela havia alcançado nota máxima naquela avalição. Ela, incrédula, segurava o papel em uma mão e o celular na outra: foto compartilhada para mostrar a nota. Eu presenciava ali a experiência de ver alguém feliz por ter alcançado um primeiro dez, algo que há anos não via.
Em face da complexidade que se apresentava e percebendo a riqueza do trajeto, pedi às estudantes que respondessem uma pesquisa de avaliação do curso[2]. Quatro meses de aulas de conteúdos gerais (matemática, português, expressão corporal, entre outros) e de conteúdos específicos (introdução ao turismo, recepção e reservas, meios de hospedagem e técnicas de serviços de governança) formaram o currículo de duas turmas sediadas na Defensoria Pública do Rio de Janeiro[3]. A turma da tarde foi a que pude acompanhar ao longo de todo curso e, por isso, a elas dirigi o meu pedido para participação na pesquisa.
Foram 14 mulheres que chegaram até o final das aulas da tarde, em uma lista de 22 inscritas. Das que ficaram pelo caminho, assim o fizeram por questões familiares, porque conseguiram algum “bico”, ou porque a rotina pesada de aulas tornou-se insustentável. Ainda assim, considero 14 um sucesso, especialmente ponderando que essas mulheres precisavam chegar ao Centro do Rio de Janeiro vindas de bairros como: Vigário Geral, Maré, Mangueira, Ilha do Governador e Campos Elíseos.
O primeiro desafio da pesquisa foi propor questões de fácil compreensão, com texto suscinto, mesmo buscando captar percepções complexas. Ainda assim, foi preciso explicar algumas questões e, na depuração, descartar algumas respostas, por preenchimento errado. Isso vai ao encontro da percepção de três das respondentes, acerca da necessidade de aumento de carga horária de aulas de português.
Das 14 respondentes, a maioria delas (10) não estava trabalhando durante o curso. Em contrapartida, a maioria também estava estudando em outro lugar: 5 cursavam Ensino Médio, 4 faziam curso profissionalizante e 4 faziam curso técnico. Apenas duas delas já haviam estudado algo sobre turismo.
Para a maioria (10), o interesse primordial em realizar o curso voltou-se para o reingresso no mercado de trabalho. Em segundo lugar, destacou-se a possibilidade de adquirir conhecimento (5 pessoas), conseguir o primeiro emprego e receber a bolsa de estudos (2 cada). Para cinco delas, a permanência no curso até o final deu-se, sobretudo, pelo foco no reingresso no mercado de trabalho.
Ao final do semestre, a maioria (10) indicou sentir-se apta a trabalhar na área, mas ainda com necessidade de aprender mais sobre a função. Para 12 delas, o fator da aprendizagem foi o destaque maior da trajetória, seguido pelos fatores de socialização (9), convivência em ambiente democrático (8), contato com pessoas que possuem pontos de vista diferentes (7), estabelecimento de relações humanizadas e/ou afetivas (5) e vivência de desafios (3) – em questão de múltipla escolha. Já como dificuldades para se manter no curso, 7 apontaram a chegada ao local do curso, em virtude de transporte e/ou trajeto. Para 5 delas a maior dificuldade centrou-se em estudar em casa, para 4 houve dificuldade em cumprir horários, para 2 houve dificuldades de se manter a frequência e para outras 2 a maior dificuldade centrou-se na socialização.
De modo geral, o conjunto de disciplinas estudadas superou ou atendeu as expectativas. As instalações e os/as professores/as foram avaliados/as com nota máxima por todas. O fator mais positivo do curso foi a construção das amizades e os/as professores/as (6 e 5, respectivamente), seguido pelos conteúdos (4).
Em especial este último resultado me fez lembrar de um pensamento que tive nos primeiros dias de aula: “mas como essa senhorinha vai ser camareira?”. Ele surgiu quando olhei para “A”, uma senhora que seguramente passava dos 70 anos, movia-se lentamente e não devia pesar mais do que 40kg. Falou pouco ao longo do curso, mas fazia todas as avaliações, jamais faltou às aulas, perguntava quando não entendia... e era visivelmente muito querida por todas da turma. Ela não estava ali por um trabalho, mas, sobretudo, em busca do que aquele ambiente com aquelas pessoas poderia oferecer para a sua vida.
Depois do último dia de aula, a turma organizou um café de encerramento. Entre as diversas falas de despedida, uma delas, a de “M”, me fez voltar para casa refletindo: “professora, a sra. coloca a gente no nosso lugar só com o olhar”. Foram dias pensando se eu havia pesado a mão, se havia exigido demais da turma, ou se havia sido ríspida com aquela pessoa... Até que chegou o convite para a formatura e para eu ser paraninfa da turma. Na entrega do diploma para “S”, ela disse: “se não fosse você, eu não teria me formado”. Quero acreditar que esse foi um complemento da fala de “M” e que consegui ir além da professora que eu fui no início dos anos 2000, para o primeiro grupo em situação de vulnerabilidade social que atendi. Quero acreditar, também, que o governo federal compreenda que os indicadores de notas e frequências das turmas são importantes, mas que não abarcam toda a complexidade de projetos como o Mulheres Mil. Sobretudo, quero crer que este e outros projetos similares tenham retornado não apenas como uma política pública isolada, mas que possam ter continuidade, com monitoramento e avaliação (raros em políticas públicas de turismo).
Como encerramento, eu poderia fazer os cruzamentos dos dados com a teoria, mas acredito que para um/a leitor/a atento/a está tudo aí: a educação construtivista (Hermann, 2010; Bezerra et al., 2021), o diálogo e a transformação como base da educação popular (Freire, 2003) e a contribuição do respeito à diversidade de identidades para a educação inclusiva (Goffman, 2007). Está aqui também o relato de uma pessoa dedicada ao turismo há quase vinte anos e que, ainda assim, sempre se surpreende com o que ele tem a oferecer na complexidade da rotina, para além das questões do trabalho.
Referências:
Röhrs, Hermann. (2010). Maria Montessori. (Coleção Educadores). Recife, Fundação Joaquim Nabuco: Editora Massangana.
Bezerra, Denise. Da Silva, Daniel Mazon. Fialho, Francisco Antonio Pereira. Dos Santos, Michele Steiner. Dos Santos, Neri. (2021). Passeando de bicicleta com Jean Piaget [livro eletrônico]: fundamentos. (1. ed.). Florianópolis, SC: Editora Arquétipos.
FREIRE, Paulo. (2003). Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. (5. ed.) São Paulo: Paz e Terra.
Goffman, Erving. (2007). A representação do eu na vida cotidiana. (14a ed.). Petrópolis: Vozes.
Sesc. (2017). Cadernos Sesc de Cidadania: Ética no Turismo. São Paulo: Sesc São Paulo. Disponível em: <https://issuu.com/sescsp/docs/caderno_sesc_de_cidadania_ano8_n12_>.
[1] Programa do Governo Federal destinado a mulheres em situação de vulnerabilidade social. Aplicado gratuitamente em território nacional, sob a coordenação do Ministério da Educação. Mais informações podem ser adquiridas em https://www.gov.br/mec/pt-br/acesso-a-informacao/perguntas-frequentes/mulheres-mil.
[2] As estudantes responderam a pesquisa em formulário padronizado impresso, contendo 23 questões (três delas dissertativas), em horário de aula, cujo preenchimento foi individual.
[3] As aulas do segundo semestre do Programa Mulheres Mil (MM), ministradas na cidade do Rio de Janeiro, transcorreram sob a coordenação do Colégio Pedro II (CPII). Em parceria com outras instituições, as aulas foram ministradas de modo descentralizado, atendendo aos cursos de Confeiteira e de Camareira em Meios de Hospedagem. Mais informações sobre a operação do MM pelo CPII podem ser acessadas em: https://www.cp2.g12.br/ultimas_publicacoes/225-noticias/13272-cpii-abre-seleção-para-professores-do-programa-mulheres-mil.html
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