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A história de Cassandra é ficção, mas poderia ser real: análises de cenas do filme franco-belga “Bem-vindos a bordo”

Angela Teberga de Paula, Lara Stéfany Almeida de Maria & Bianca Briguglio



Rien à foutre / Zero Fucks Given (no Brasil, foi lançado com o título “Bem-vindos a bordo”) é um filme de 2011, dirigido por Emmanuel Marre e Julie Lecoustre, de nacionalidades francesa e belga. O filme conta a história de Cassandra Wessels, interpretada pela atriz Adèle Exarchopoulos, uma jovem comissária de bordo que trabalha na fictícia companhia aérea Wing, empresa européia do segmento low cost



Uma das (tantas) coisas que chama a atenção no filme é que conhecemos o nome da personagem protagonista somente com 39 minutos de vídeo percorrido. O propósito de saber o nome da protagonista apenas na metade do filme é indicar que os(as) trabalhadores(as) são tratados como números e não possuem personalidades e individualidades. A história é de Cassandra, mas poderia ser de Maria, Luiza ou Carla. Poderia ser, em verdade, de qualquer comissária, em qualquer lugar do mundo, guardados outros marcadores relacionados à etnia e, principalmente, à raça. Porque, é preciso dizer, Cassandra é uma jovem europeia e branca, e isso diz muito sobre suas condições de trabalho.


É visível que Cassandra está infeliz com seu emprego. Há três anos na Wing, intercala seu trabalho com descanso no sofá da sala, festas, encontros casuais e consumo de álcool para escapar da rotina (os membros de sua família aparecem somente quando ela precisa mudar de base, Lanzarote, uma cidade espanhola nas Ilhas Canárias, e vai se hospedar na casa de seu pai). Em uma das cenas no aeroporto, vê uma equipe de tripulantes da Emirates e sonha acordada em trabalhar na companhia árabe a fim de viajar para outros continentes e receber melhores salários.


Como adianta o título, a história de Cassandra é ficção, mas poderia ser real. A literatura internacional tem apontado para a precariedade do trabalho dos(as) comissários(as) de bordo, marcado pelas jornadas desgastantes, assédio moral e sexual, e adoecimento físico e mental. A espetacularização e o glamour da profissão escondem as horas de sono desreguladas, o estresse, o isolamento social e familiar, os transtornos alimentares… 


A feminilização da profissão é o aspecto mais marcante. No Brasil, foram empregados, no ano de 2021, 7.270 mulheres (67%), em detrimento de 3.435 homens (33%), segundo dados da RAIS (Relação Anual de Informações Sociais / Ministério do Trabalho, 2021). Esse fato está atrelado a uma série de estereótipos presentes na aviação desde o princípio da comercialização da aviação civil, a exemplo da construção do imaginário de sensualidade das mulheres comissárias, como será discutido adiante.


Neste artigo, mais do que uma resenha fílmica, propõe-se analisar algumas manifestações da precariedade da profissão de comissário(a) de bordo, a partir de cenas do filme. A utilização do cinema para reflexão crítica sobre o mundo do trabalho e as contradições da sociedade burguesa é uma estratégia que vem sendo utilizada pelas ciências sociais de maneira exitosa. Embora o campo do turismo não conte com muitas produções cinematográficas com esse objetivo, destacamos o filme mexicano A Camarista, que foi analisado pela pesquisadora Michele Pereira Rodrigues para o blog do Labor Movens



As condições de trabalho: salários e jornadas exaustivas de trabalho


_ Estou ligando porque a equipe de planejamento me disse que estávamos com falta de pessoal para o Natal. Sei que você cumpriu suas horas estipuladas este mês, mas preciso saber se você ainda pode trabalhar neste momento. Preciso de uma resposta o mais rápido possível, mas é apenas uma proposta, não precisa aceitar. Responda para mim o mais rápido possível. Obrigado.
_ Sim. Está bom para mim, David.

Dados referentes à Convenção Coletiva de Trabalho da Aviação Regular no biênio 2022/2023 revelam que o piso salarial dos(as) comissários(as) de bordo no Brasil é de R$ 2.436,16 e que o valor mínimo do vale alimentação é de R$ 495,50. O salário variável é composto pelas diárias, acrescido de remuneração por hora de voo que exceder a 54ª hora de voo realizada no mês. Neste mesmo período, o salário mínimo (SM) era R$ 1.212,00 e R$ 1.320,00, respectivamente. Isso significa que o piso salarial da categoria é um pouco mais que dois SM. 


Já de acordo com os dados da RAIS (Ministério do Trabalho, 2021), a faixa remuneratória média mensal de 32% dos(as) comissários(as) foi de 5 a 7 SM e de 29% foi de 4 a 5 SM no ano de 2021. A diferença entre o piso salarial (2 SM) e a remuneração média mensal (> 4 SM) é composta pelo salário variável, essencialmente a remuneração por hora de voo excedida, que é equivalente a R$ 21,99. Os ganhos desses(as) profissionais são, portanto, dependentes do prolongamento das jornadas de trabalho, já que metade do salário, ou mais, é composto pelo pagamento das horas excedentes. É importante salientar que não incide sobre a remuneração variável nenhum tipo de imposto ou desconto previdenciário, isto é, para cálculo de aposentadoria, férias ou qualquer tipo de benefício do trabalhador, conta-se apenas a remuneração fixa. 


Considerando ainda que, segundo o Dieese, o salário mínimo necessário para manter uma família no mesmo período variou entre R$ 5.997,14 (2022) e R$ 6.547,58 (2023). Neste cálculo, a metodologia utilizada para calcular o Salário Mínimo Necessário envolve o Custo Familiar de Alimentação (C.F.A) e o Custo da Cesta Básica (C.C) de maior valor no Brasil. Ou seja, ainda que pareça que o piso salarial e a média salarial são altos, diante do cálculo do que seria necessário para uma família, ele ainda é um salário baixo. 


Com relação ao que foi acordado sobre o vale-refeição dos trabalhadores, vale ressaltar que, ainda de acordo com o Dieese, o valor da cesta básica em diversos estados brasileiros em 2022 variou entre R$ 507,82 (Aracaju) e R$ 713,86 (São Paulo) e em 2023 variou de R$ 517,26 (Aracaju) e R$ 766,53 (Porto Alegre). Isso atesta que o vale alimentação oferecido é irrisório e insuficiente em qualquer estado do Brasil.


Esses dados revelam, em verdade, que o prolongamento das jornadas de trabalho é a dimensão mais determinante quando se pensa em trabalho precário na aviação civil. Mesmo que a ampla maioria dos(as) comissários(as) sejam contratados na faixa de 31 a 40 horas (mais de 60%), segundo dados do Ministério do Trabalho (2021), o estudo da composição salarial indica que são muitas as horas excedentes ao efetivamente contratado, o que pode apontar para a naturalização desta extensão, de maneira que a jornada que se pratica ordinariamente seja muito maior do que o que é permitido pela legislação. 


Ainda que a Convenção Coletiva de Trabalho da Aviação Regular procure regulamentar e limitar o trabalho de madrugada, especialmente nas madrugadas consecutivas, o que o filme nos permite vislumbrar é que, diante de imprevistos ou quaisquer eventualidades, esses trabalhadores são convocados a continuar trabalhando, muitas vezes sujeitos a coações mais ou menos sutis, correndo o risco de se indispor com chefias - o que, sabemos, pode acarretar muitos outros problemas para estes trabalhadores. Nesse caso, a necessidade de solucionar problemas das companhias aéreas com clientes se sobrepõe a qualquer preocupação com a saúde dos tripulantes. 


Segundo Görlich & Stadelmann (2020), as longas horas de vôo e o expediente noturno contribuem de maneira decisiva para aumentar o risco à saúde dos(as) comissários(as), pois implicam alteração no ritmo biológico do corpo humano, aumentando as sensações de fadiga e exaustão. Existem também os fatores de alto risco relacionados à rotina vivenciada diariamente no ambiente de trabalho do comissário(a):


Esses trabalhadores estão constantemente expostos à radiação ionizante cósmica, interrupção do ciclo circadiano em resultado dos períodos noturnos de trabalho, atravessar fusos horários, má qualidade do ar da cabine de voo, níveis elevados de ozônio, hipóxia, pesticidas da desinsetização da cabine, altos níveis de ruídos ocupacionais, demandas pesadas de trabalho físico além de assédio verbal e sexual (McNeely et al., 2018, p. 01, tradução livre).


Nery (2009) realizou pesquisa no Hospital da Aeronáutica de São Paulo com objetivo de avaliar os fatores recorrentes nos diagnósticos de transtornos psicológicos que resultaram em afastamento de comissários(as) de bordo. A partir da análise dos prontuários, de um total de 648 comissários(as) (105 homens e 543 mulheres), observou que os afastamentos deviam-se, em primeiro lugar, a episódios depressivos (44,5% homens e 35,5% mulheres), seguido por transtornos de ansiedade (20% homens e 23% mulheres). Tal estudo revela a necessidade de atentar para o modelo de trabalho designado pelas companhias aéreas e como isso afeta os(as) profissionais deste setor.


O Observatório de Segurança e Saúde no Trabalho (SmartLab/MPT) faz um mapeamento das notificações de acidentes de trabalho no Brasil, considerando os grupos mais vulneráveis às ocorrências, bem como os agentes causadores e a natureza da lesão, a partir dos dados do INSS (Instituto Nacional do Seguro Social). Nessa plataforma, identificamos que, de 2012 a 2022, houve o registro de 1.150 acidentes de trabalho entre comissários(as) de voo, sendo a segunda ocupação com mais notificações dentro do setor econômico de transporte aéreo de passageiros regular, com 17% do total das ocorrências. Neste setor, somente no ano de 2022, os transtornos mentais e comportamentais foram responsáveis por 37% do total de concessão de benefícios previdenciários acidentários (B91), seguido das fraturas (26%) e das doenças osteomusculares e tecido conjuntivo (17%).



Turismo em horários de folga como escape da rotina


_ Que bom! Você deve ter visto alguns lugares lindos!
_ Sim, tenho sorte. Já estive em toda a Europa. E um pouco de África também!
_ Conseguiu visitar os locais? E já viu todos os países?
_ Nem sempre tenho tempo. Há quinze dias, na mesma semana, fui a Milão, Mykonos, Essaouira e voltamos para Lanzarote.
_ Nada mal.

A profissão de comissário(a) de bordo é permeada por uma visão idealizada socialmente na qual estão presentes as ideias de sucesso, liberdade e glamour, associadas às viagens ao redor do mundo, à possibilidade de conhecer múltiplos destinos turísticos ou, em outras palavras, ser pago(a) para viajar. 


Estudo realizado no Brasil com cerca de 552 mulheres que vivem na região metropolitana de Salvador revelou uma relação negativa entre a participação em atividades de lazer e a recorrência de sintomas de depressão e ansiedade (Pondé & Santana, 2000). Os resultados deste estudo demonstraram os sintomas de depressão e ansiedade, como perda de apetite, distúrbios do sono, incapacidade de trabalhar devido ao estresse e até mesmo pensamentos suicidas, eram mais recorrentes em mulheres que não tinham atividades de lazer, em comparação com as que tinham. 


Em entrevistas realizadas para a produção do trabalho de conclusão de curso em Turismo da Universidade de Brasília de Lara Stefany Almeida (2023), algumas comissárias afirmaram que a possibilidade de viajar constantemente lhes traz a sensação de liberdade, a dinâmica do trabalho para montar escalas e a oportunidade de conhecer diversas pessoas são um fatores que para elas asseguram a disposição de permanecer na profissão e encontrar meios de superar situações que podem acarretar adoecimento psíquico. 



A hospitalidade vigilante dos corpos femininos


_ Cartão ou dinheiro?
_ Também tenho que pagar pelo sorriso?
_ Cartão ou dinheiro?
_ Sorria um pouco. Tenho certeza que você é muito bonita quando sorri.
_ Cartão ou dinheiro? Cartão ou dinheiro?
_ Sorria para mim!
_ Você não vale nada, hein? Apenas boa em fazer um trabalho de merda para uma empresa de merda.

Dentre as tarefas que cabem aos(às) comissários(as) está o de fornecer serviço de alimentos e bebidas, auxiliar os passageiros na cabine e esclarecer eventuais dúvidas. O atendimento ao cliente se tornou forte incentivo para que esta profissão seja considerada de cunho feminino, pois segundo Nery (2009), ainda que o objetivo principal dos(as) comissárias(as) seja garantir a segurança dos passageiros, ela continua carregando o estigma de atividade considerada “doméstica”, já que se restringe, em sua maioria, aos cuidados e prestação de serviços. 


Segundo Fraga e Rocha-de-Oliveira (2022), o processo pelo qual passa o(a) aeronauta, desde sua formação, ingresso e, por fim, permanência nos cargos de comissário(a) ou piloto(a), consiste em perpetuar um projeto de gênero que visa garantir a crença em papéis designados propositalmente em um ideal de binaridade dos gêneros e hierarquia. Os autores enfatizam que nos cursos para a formação de comissários(as) já se fazem presentes discursos de naturalização de possíveis assédios provenientes da relação de proximidade com passageiros.


É importante atentar para o componente de gênero que permeia tais comportamentos e a influência que ele exerce nas subjetividades. A ideia da mulher cuidadora, gentil, afetuosa e, em última análise, servil, está muito presente na sociedade, reforçando papéis impostos às mulheres no mundo do trabalho, sobretudo no setor de serviços e, principalmente, no atendimento ao público. No mundo do trabalho, ainda se espera que as mulheres atuem como fazem no espaço privado: como cuidadoras, colocando o bem estar dos outros diante do seu próprio.

Essa performance feminina e feminilizada de atendimento, serviço, atenção, acolhimento e cuidado muitas vezes serve como justificativa para o assédio moral e sexual que essas mulheres sofrem, tanto de superiores hierárquicos, colegas e clientes. 


Experiências com os passageiros e colegas de profissão também são fatores que propiciam o aumento dos níveis de estresse, podendo chegar ao adoecimento psíquico, tendo em vista que os(as) comissários(as) estão constantemente expostas aos passageiros que podem estar insatisfeitos com questões como atrasos, cancelamentos de voos e outros imprevistos. A grande maioria de comissárias relatam casos de assédio por parte tanto de passageiros como de superiores (Ballard et al., 2004).



O consumo de álcool para suportar a rotina


_ Você não sabe se bebeu ou se cheira a álcool? Fez uma festa ontem?
_ Não.
_ Não?
_ Não. Não me sentia bem, então…
_ Então?
_ Então eu bebi.
_ Certo. Apenas um? Quando? Doze horas antes do seu voo ou depois? Você não sabe? O prazo? Você tem que cumprir o prazo. É ainda melhor não beber nada antes do seu voo. Porque, francamente, você não poderá voar hoje.
_ Eu juro, estou bem, posso voar.
_ Mas se cheira a álcool e temos um teste… tenho que substituir você.
_ Não, não. Vou pegar uma goma de mascar, um doce. Posso fornecer vendas, serviços… Posso fazer tudo.
_ Francamente, não sei. Eu gosto de você, você parece bem, mas cheira a álcool. Estamos acima de tudo pela segurança, antes dos aspectos comerciais. Mas…
_ Me faça qualquer teste, você verá que estou bem.
_ O teste, acabei de fazer. Não é bom, você cheira a álcool. É o suficiente para mim.
_ Vou escovar os dentes. Eu juro, eu posso voar.

Comumente, sintomas de adoecimento psíquico, depressão e até mesmo ansiedade, são ignorados enquanto sintomas e entendidos como uma sensação passageira (ainda que recorrente), resultado de um dia ruim ou de algum estresse específico. Muitas vezes, as pessoas acometidas por estes problemas procuram resolver ou curar estes sintomas, sem atentar para o fato de que são indicadores de problemas mais graves e mais profundos. Então a insônia é resolvida com um remédio para dormir, as dores de cabeça com um remédio para dor de cabeça, as dores no corpo com um analgésico, e assim procura-se resolver o que é imediato sem se dar conta do que de fato está causando estes problemas.


No caso de um ambiente de trabalho estressante ou condições de trabalho adoecedoras, não é raro que trabalhadores e trabalhadoras procurem aliviar seus sintomas de estresse, depressão e ansiedade utilizando o que seriam drogas lícitas, como analgésicos e relaxantes musculares, assim como o abuso de drogas e álcool. Trata-se, novamente, de uma forma de minimizar sintomas, como o nervosismo, os pensamentos negativos, o estresse, sem olhar para o que realmente está causando estes sintomas. No longo prazo, é sabido que o abuso de álcool e drogas pode ter consequências graves para a saúde dos(as) trabalhadores(as), mas no caso dos(as) comissários(as), isso pode ser ainda mais perigoso, uma vez que, no caso de um acidente ou qualquer problema durante o vôo, serão elas as responsáveis por orientar os passageiros e conduzi-los em segurança. 



Sabe-se a importância, mas não há sentimento de coletivo: a falência dos sindicatos fordistas


_ E você acha que essas condições são boas?
_ Não sei. Preciso trabalhar, então trabalho.
_ É um trabalho muito bom, mas não nessas condições. Veja como são outras empresas!
_ Condições... É sempre o mesmo. Sempre há imperfeições.
_ Você conhece as condições de trabalho em outras empresas? Se, por exemplo, você ficar doente, eles lhe pagam?
_ Não sei, tento não ficar doente. Eu me cuido muito bem. Eu bebo vodca.
_ Acho que é hora de agir! E é fenomenal que esta greve esteja ocorrendo em toda a Europa. Onde é sua base? 
_ Não sei. Em Lanzarote, mas realmente não tenho tempo para fazer a revolução. 
_ Talvez devêssemos estar com vocês, é verdade… mas vamos perder o nosso voo… e não queremos ter problemas.
_ Eu posso entender isso, mas… pense nisso para a próxima greve, certo?
_ Sim, claro.
_ É bom ter pessoas. As coisas vão mudar se trabalharmos juntos. É essencial que todos apoiem a causa. Vá conversar com suas colegas! Algumas de suas colegas de Lanzarote também estão em greve. Vá vê-las. Elas vão te explicar. Tenho certeza que se não fizermos nada as coisas vão piorar.
_ Sim, mas não acredito muito na mudança… Não temos a mesma idade, então, o que podemos sacrificar não é o mesmo.
_ Não acredita na mudança?
_ Significa que tenho um voo e gostaria de pegá-lo.
_ E o futuro?
_ Eu nem sei se estarei viva amanhã, então só quero pegar meu voo.

Uma das facetas mais perversas e fundamentais do neoliberalismo é a individualização. A partir do momento que os trabalhadores e trabalhadoras não se vêem mais como um coletivo, como um grupo, dificilmente poderão entender que são também uma classe. A individualização neoliberal, a mesma que afirma que todos podemos ser ricos e chefes, basta querer, basta se esforçar, basta “trabalhar enquanto eles dormem”, retira a união dos trabalhadores do horizonte, oferecendo apenas saídas individuais, que não resolvem e não resolverão jamais o problema das condições de trabalho, do pagamento justo, dos direitos associados ao trabalho.


Não são poucas e nem raras as histórias das práticas antissindicais de empresas, pois estas sim têm clareza sobre o potencial da organização dos trabalhadores e o que a união classista pode conquistar. A ideologia de que não há nada a fazer, que só cabe à classe trabalhadora seguir trabalhando em condições que se deterioram a cada dia, observar silenciosamente enquanto seus direitos são atacados e subtraídos, serve muito bem aos patrões e às classes dominantes. 


Enquanto os trabalhadores acreditam que não há nada que possam fazer, que o sindicato não representa seus interesses, que organizar-se é perder tempo de descanso ou de lazer, as empresas sabem muito bem o risco que correm quando os trabalhadores se dão conta que sua força reside no coletivo, e não em disputas entre indivíduos, ou em reivindicações isoladas. 


No caso das comissárias, essa questão parece ainda mais complicada e, na prática, mais difícil de se concretizar. Como já discutimos, as jornadas de trabalho são atravessadas por escalas dinâmicas que mudam constantemente, o trabalho noturno, as equipes que trocam toda hora. Ainda que, em alguns momentos, seja possível vislumbrar o sentimento de pertencimento a um grupo, este não parece conservar-se quando se trata de discutir o próprio trabalho ou as reivindicações de uma categoria. 



Isolamento social e a estética necessária para a profissão


Assim como a profissão de comissária de bordo é marcada socialmente por essa ideia de ser paga para viajar e conhecer o mundo, o estereótipo da mulher que realiza este trabalho também é construído socialmente, fundamentando-se em um padrão de beleza que impõe a magreza, a pele clara, o cabelo liso, a maquiagem ostensiva, a elegância. Aos homens comissários também correspondem estereótipos de beleza, mas que nem de longe são tão opressivos ou impositivos como o são para as mulheres. A chamada “boa aparência” é uma condição si ne qua non para o trabalho das comissárias, afinal, elas devem ser o rosto bonito que traz a calma e a segurança aos passageiros. E isso é indissociável do padrão de beleza imposto socialmente ao conjunto das mulheres. 


Após ser despedida do cargo de chefe de cabine, Cassandra faz uma entrevista de emprego online com uma empresa de táxi aéreo de alto luxo de Dubai, por indicação de sua ex-colega de empresa Dounia. Na cena da entrevista de emprego, duas questões são marcantes.


Parte 1

_ Qual é a sua situação pessoal? Tem namorado? Planeja ter filhos?
_ Não, estou completamente solteira. Nada nem ninguém está me segurando. Não tenho laços. Se você quiser que eu vá amanhã para Tóquio ou Japão, posso ir em um minuto.
_ Flexibilidade e disponibilidade são realmente essenciais para nós e em nosso mundo, o "não" não existe. A adaptabilidade é certamente a principal qualidade que procuramos para fazer parte da nossa empresa.

Existem fatores subjetivos que também correspondem à redução de qualidade de vida e aumento de transtornos psicológicos, como depressão e ansiedade em comissárias. Segundo Ballard et. al (2006), os transtornos surgem em decorrência dos estressores de trabalho que aumentam a sensação de isolamento, cansaço e falta de tempo para exercer papéis sociais - de relacionamentos conjugais, familiares ou de fraternidade além do expediente. A permanência na profissão de comissária implica um dilema para as mulheres que escolheram essa carreira, principalmente quando elas se vêem diante do exercício dos papéis sociais de mãe e esposa. É preciso submeter-se à rotina instável em função da aleatoriedade das escalas de voo, bem como possuir uma rede de apoio e, principalmente, autocontrole emocional para delegar parte da administração dos afazeres domésticos e de cuidado dos filhos para outras pessoas. É preciso colocar a vida conjugal em plano secundário. Isso não significa uma condição de vitimização das comissárias que são mães ou esposas, mas a prática desses modelos de relações sociais, que são altamente idealizados pela sociedade, demandam um olhar e flexibilidade distintas do usual para as comissárias em função das características singulares desta profissão (Silva, Uziel & Rotenberg, 2014).


No último ano, um caso específico ganhou as mídias do Brasil: uma tripulante perdeu a guarda do seu filho, em razão de sua rotina de trabalho supostamente não ser condizente com a maternidade. A decisão do juiz concedeu a guarda unilateral da criança ao genitor. A pesquisadora Carolina Castellitti, autora de “Anfitriãs do céu: carreira, crise e desilusão à bordo da Varig” (2021), publicou no Blog do Labor Movens publicou uma nota em apoio à comissária Josiane, em que é possível verificar mais detalhes sobre o caso.


Parte 2 

_ Procuramos alguém com personalidade, mas a elegância também é muito importante para nós. Então, o que você faz para ficar em forma?
_ Eu faço fitness para manter a forma, mas também para aliviar a pressão.
_ Ótimo.
_ Posso lhe pedir para se levantar e dar alguns passos?
_ Claro.
_ Dê uma volta em si mesma.
_ Certo.
_ Muito obrigado. Pode retomar seu assento. Essa é a sua cor de cabelo de verdade?
_ Sim. Mas posso ficar loira se os anfitriões preferirem.
_ Certo.

Para permanecer na profissão de comissária e transmitir esse profissionalismo é necessário que as mulheres preencham um requisito de estética impecável, que inclui usar sapatos de salto alto, unhas arrumadas na manicure, cabelos perfeitamente arrumados seguindo um padrão rigoroso para tamanho e cores, além de peso e medidas corporais restritas. 


No relatório da Alba Sud sobre as Desigualdades de Gênero no Mercado de Trabalho Turístico, as autoras dão destaque às comissárias de bordo como o coletivo de trabalhadoras do setor que mais sofre com a imposição de padrões de beleza, incluindo especificações de peso, imagem, dentes e beleza facial: “Las empresas exigen a las azafatas que se vistan de manera “atractiva” y que tengan una buena apariencia, es decir, que sean delgadas, jóvenes y “bonitas”” (Calvet et al., 2021, p. 20). 


Calvet et al. (2021) citam que diversas companhias aéreas possuem um protocolo de vestimenta, que indica a altura do salto do sapato durante o vôo (3 a 5 cm) e da altura do salto do sapato para embarcar, desembarcar e caminhar pelo aeroporto (5 a 10 cm). No Brasil, somente no ano de 2023, a companhia aérea Gol autorizou o uso de tênis pela tripulação e trabalhadores do aeroporto, sendo a primeira empresa aérea brasileira a adotar essa medida, com o objetivo de proporcionar maior conforto na jornada de trabalho.



Considerações Finais


O filme suscita uma série de questões que se referem à vida e ao trabalho de comissários e comissárias de bordo. Ainda que a dramaturgia traga suas próprias reviravoltas e especificidades de personagens, o filme pode embasar muitos debates no que se refere à contratação, jornada de trabalho, condições de trabalho, relações entre colegas e clientes, assédio moral e sexual e precarização do trabalho, entre outras. Não se trata aqui de apresentar soluções para esses problemas, mas trazer elementos para suscitar um debate que problematize todas essas questões. 


Imaginar que as realidades de comissários e comissárias de vários lugares do mundo são atravessadas pelos mesmos dramas e dificuldades é um pouco assustador, mas também fundamental para compreendermos que, para além do que é específico e particular, para além do que nos separa, há sempre o que nos une, o que é comum: a exploração do trabalho e as graves consequências que ela traz para o lado mais vulnerável das relações de trabalho, os trabalhadores e as trabalhadoras. 


A falta de conexão dos trabalhadores de uma mesma categoria para além de um ou  outro momento específico, a falta de vínculos afetivos e profissionais que, em alguma medida, lhes permitiria enxergar a própria condição de classe, torna esta exploração mais simples. Sem se darem conta que sua força reside no coletivo, seguem buscando saídas e alternativas individuais que não vão ao cerne do problema, não garantem salários justos ou condições dignas de trabalho. 


A super exploração dos comissários e comissárias também tem o adoecimento como consequência, sobretudo doenças de natureza psíquica e psicológica, como burnout, depressão e problemas no sono, que podem evoluir para quadros ainda mais graves se permanecerem sem tratamento. E o tratamento aqui não se restringe a tomar medicação, mas ter momentos de descanso, lazer e desconexão do trabalho. 


A questão de gênero também é tratada de maneira sensível, demonstrando o quanto as ideias de feminilidade e os estereótipos de gênero são instrumentalizados para penalizar ainda mais as mulheres, seja diante do assédio de clientes, seja diante da vigilância sobre seus corpos, maquiagem e cabelo. Essa exploração também se expressa na dificuldade que muitas comissárias encontram em equilibrar a vida pessoal, familiar e profissional no meio das escalas e extensão da jornada de trabalho. 


Como muitos trabalhadores e trabalhadoras do setor de serviços e de hospitalidade, a avaliação do que seria um bom trabalho reside justamente nas qualidades daquele ou daquela que o desempenha, não raro passando pela invisibilização deste(a) trabalhador(a) - como é o caso dos serviços de asseio e limpeza. Entretanto, é nosso dever chamar atenção para esta realidade e aproveitar um produto audiovisual, como um filme, que demonstra de maneira tão didática os percalços e sofrimentos deste grupo profissional tão pouco visibilizado. É importante atentar também para a forma como isso é feito: não para difundir a imagem ideológica da comissária livre que ganha salário para conhecer o mundo, mas sim a imagem da trabalhadora que precisa sorrir enquanto é explorada, enquanto sofre, enquanto sente que não pode lutar. 



Referências

‌Ballard, T. J., Corradi, L., Lauria, L., Mazzanti, C., Scaravelli, G., Sgorbissa, F., Romito, P., & Verdecchia, P. (2004). Integrating qualitative methods into occupational health research: a study of women flight attendants. Occupational and Environmental Medicine, 61(2), 163–166. https://doi.org/10.1136/oem.2002.006221

Ballard, T. J., Romito, P., Lauria, L., Vigiliano, V., Caldora, M., Mazzanti, C. & Verdecchia, A. (2006). Self perceived health and mental health among women flight attendants. Occupational and Environmental Medicine, 63(1), 33-38.

Calvet, N. A., Conde, C. I., Ballart, A. L. & Almela, M. S. (2021). Desigualdades de Género en el Mercado Laboral Turístico. Serie Informes en contraste, n. 14. https://www.albasud.org/publ/docs/97.pdf 

Fraga, A. M. & Rocha-de-Oliveira, S. (2022). Masculinidades e Feminilidades a bordo: Projeto(s) de gênero na carreira de comissárias e comissários de voo. Revista de Administração de Empresas, 62(3). https://doi.org/10.1590/s0034-759020220309

Görlich, Y. & Stadelmann, D. (2020). Mental Health of Flying Cabin Crews: Depression, Anxiety, and Stress Before and During the COVID-19 Pandemic. Frontiers in psychology, 11, 581496. https://doi.org/10.3389/fpsyg.2020.581496

McNeely, E., Mordukhovich, I., Tideman, S., Gale, S. & Coulll, B. (2018). Estimating the health consequences of flight attendant work: comparing flight attendant health to the general population in a cross-sectional study. BMC Public Health, 18, 346 https://doi.org/10.1186/s12889-018-5221-3 

Ministério do Trabalho (2021). RAIS - Relação Anual de Informações Sociais. https://bi.mte.gov.br/bgcaged/login.php 

Nery, M. L. C. (2009). Frequência e prevalência de diagnósticos psiquiátricos determinantes do afastamento de comissários de bordo da atividade aérea. Dissertação de Mestrado em Saúde Pública da Universidade de São Paulo. https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/6/6134/tde-28092009-150841/publico/MariaLuizaNery.pdf 

Pondé, M. P. & Santana, V. S. (2000). Participation in leisure activities: Is it a protective factor for women's mental health? Journal of Leisure Research, 32(4), 457-472. https://doi.org/10.1080/00222216.2000.11949927 

Silva, F. R. da, Uziel, A. P. & Rotenberg, L. (2014). Mulher, tempo e trabalho: o cotidiano de mulheres comissárias de voo. Psicologia & Sociedade, 26(2), 472–482. https://doi.org/10.1590/s0102-71822014000200023


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