Luzimar Soares Bernardo | Doutoranda PROMUSPP/EACH/USP
Crédito: Burst Photos
As duas primeiras décadas do século XXI trouxeram muitas mudanças no setor de transportes aéreos. Essas alterações formaram um caudal de trabalhadores nos mais diversos setores da aviação. Com a democratização desse modal de transporte, obviamente, aumentou, também, o número de pessoas que trabalham com a aviação, direta ou indiretamente.
A história da aviação no Brasil é entrecortada por surgimentos de novas empresas e falências desde sempre. A primeira companhia a operar no país, a Condor Syndikat, iniciou suas operações em 1924, encerrando em 1927. Vale lembrar que essa não era uma empresa brasileira, mas alemã. No ano em que a Condor encerrou suas operações aqui, a Varig iniciou. Esta manteve suas atividades até o ano de 2006. Destaca-se esta última apenas para ilustrar que, apesar da longevidade da empresa, e de ter sido uma das maiores companhias do país, quando encerrou suas atividades, seus trabalhadores não receberam os direitos trabalhistas.
Existem, hoje, muitos trabalhadores que ainda esperam receber suas verbas rescisórias das empresas que fecharam as portas nos primórdios dos anos 2000. Para piorar toda essa situação, as reformas trabalhistas dos últimos anos não criaram proteção para os trabalhadores em caso de falências, suspenção das atividades, ou, até mesmo, atraso no pagamento dos salários.
Essa breve introdução ilustra bem como o caso da Itapemirim, tristemente, não é um caso isolado, todavia, algumas peculiaridades desta empresa precisam ser destacadas. Em primeiro lugar, o proprietário desta já é do meio do turismo. Afora ser do transporte, é o detentor de uma das maiores empresas do transporte terrestre, que já estava em recuperação judicial quando montou a de transporte aéreo. Ou seja, foi autorizado, pelas autoridades do país, a abrir uma nova empresa enquanto estava devendo para muitos trabalhadores.
Os trabalhadores da aviação têm sindicatos distintos, ou seja, os trabalhadores que ficam em terra, trabalhando desde o atendimento ao cliente diretamente, até os que exercem suas funções em atender as aeronaves (quais sejam: mecânicos (as), carregadores (as), faxineiros (as), dentre outros), fazem parte do Sindicato dos Aeroviários. Os trabalhadores que exercem suas funções a bordo das aeronaves (comissários e pilotos) fazem parte do Sindicato dos Aeronautas. Entidades de classe nos auxiliaram na compreensão dos impactos sofridos pelos funcionários da Itapemirim.
De acordo com Patrícia Luiza Gomes, coordenadora executiva da Regional Sul do Sindicato dos Aeroviários, existe autonomia de ação dos sindicatos e não houve uma ação conjunta para buscar soluções que amparassem os trabalhadores. Para ela, um dos piores impactos é psicossocial. Obviamente, ela fala sobre o impacto financeiro. Todavia, ressalta:
“O impacto maior realmente é na saúde mental, além da questão financeira, dessa insegurança financeira, porque enquanto não se dá baixa na carteira, eles não conseguem ter acesso a um seguro desemprego. Mas legalmente um juiz pode determinar que o sindicato dê baixa na carteira para esses trabalhadores. Quando isso acontece, por exemplo na última vez que isso aconteceu, o sindicato nacional dos aeroviários conseguiu”.
Patrícia chama a atenção para o momento em que as operações foram paralisadas, ou seja, uma semana antes do Natal, com a justiça em recesso, impossibilitando algumas ações do sindicato. Ela, ainda, chama a atenção para as empresas que prestam serviço como terceirizadas. As menores acabam falindo junto e deixam muitos outros trabalhadores desempregados. Afora a angústia causada pelo espaço que ela chama de “limbo”, o que significa dizer que os funcionários não têm sua documentação liberada para seguir em busca de um novo emprego, ou do seguro desemprego.
Além disso, há que se pesar que a aviação é uma atividade relativamente restrita no que diz respeito à quantidade de empresas, além de contar com profissionais extremamente especializados; como o caso dos (as) mecânicos (as), profissionais esses que dedicam anos de suas vidas aos estudos e se especializam para atender e manter em segurança as aeronaves que transportam milhares de vidas. Esses profissionais, assim como os demais, ficam desempregados, sem sequer ter o direito de seguir a vida sem depender de uma autorização judicial para liberarem suas documentações.
A crueldade com os trabalhadores segue na invisibilidade. As mídias, de maneira geral, fazem grandes reportagens para falar sobre as dificuldades dos clientes que foram deixados nos saguões dos aeroportos sem possibilidades de viajar, mas não fazem matérias sobre as vidas dos trabalhadores que, abruptamente, têm suas vidas profissionais interrompidas e são jogados à própria sorte; e, muitas vezes, as entidades de classe têm poucas ou quase nenhuma ação a tomar.
Em contato com o Sindicato Nacional dos Aeronautas, fomos informados de que, desde o princípio das atividades, a Itapemirim não tem honrado os pagamentos. Embora seus funcionários tenham acreditado na palavra do dono da empresa, eles nunca receberam o depósito do fundo de garantia por tempo de serviço (FGTS). Além disso, de acordo com o Sindicato:
“A Ita foi constituída no curso da pandemia, e desde o início os aeronautas vivenciaram irregularidades, tendo o salário atrasado por diversos meses, as diárias de alimentação pagas em atraso, e o plano de saúde funcionando de forma intermitente”.
A empresa não avisou aos tripulantes (comissárias (os), pilotas (os)), sobre a paralização de suas operações, bem como, tampouco, preocupou-se com o retorno desses profissionais para suas casas. Existe um acordo de reciprocidade entre as empresas aéreas para transportar os funcionários umas das outras. Em razão da peculiaridade da atividade, muitos desses trabalhadores moram em outros estados divergentes dos estados de contratação, por esta razão, esse acordo é extremamente importante para essa categoria de trabalhador.
Desse modo, a movimentação dos tripulantes nas aeronaves de empresas congêneres é feita diariamente, porém, o acordo é pautado justamente pela reciprocidade. Se não existe mais a empresa, tampouco o acordo. Todavia, com a intervenção do Sindicato, os profissionais tiveram o retorno para suas casas garantido. Esse retorno possibilita a diminuição da vulnerabilidade dos trabalhadores, haja vista já estarem desempregados.
A empresa paralisou as operações no dia 17 de dezembro de 2021, no final do dia, não entrou em contato com seus funcionários. Todavia, no sábado, já no final do dia, emitiu um comunicado em que dizia:
“Em respeito aos nossos colaboradores e com o compromisso de manter todos atualizados a respeito da suspensão temporária de operações da ITA, esclarecemos que estamos trabalhando arduamente para a retomada de nossas atividades o mais breve possível...”.
Se a empresa retornará para a atividade, ainda não está claro. Contudo, em 04 de janeiro de 2022, os jornais noticiaram que o Ministério Público pediu a decretação de falência do grupo Itapemirim. Os funcionários não receberam mais nenhum comunicado além daquele enviado em 18 de dezembro de 2021 que, sequer, foi assinado pelo dono da empresa.
O ramo do turismo representa 12% dos empregos no país. De maneira geral, e na aviação em especial, trabalha-se por escala, muitas vezes com horários distintos. Em alguns dias, trabalha-se à noite; em outros, no período diurno. Para muitas funções, estuda-se e se mantém estudando sempre para atualização de procedimento e de legislação. Na atualidade, muitas das funções foram terceirizadas, e as condições de trabalho precarizadas pela última reforma trabalhista.
Ser demitido já tem um efeito bastante negativo na saúde mental dos trabalhadores. A falência de uma empresa sem a preocupação de liberar a documentação dos trabalhadores, sem o pagamento dos direitos trabalhistas, gera um medo quase que paralisante. De uma hora para outra, não se perde só o emprego, perde-se, também, o espaço social de convívio no trabalho, a possibilidade de manter as contas em dia, e, dependendo do grau de responsabilidade de cada trabalhador, esvai-se por entre os dedos, como uma água corrente, a capacidade e a possibilidade de manter a alimentação de sua família e a sua própria.
É preciso olhar esses trabalhadores, percebê-los como parte de uma engrenagem que precisa funcionar para manter as empresas, mas, especialmente, como trabalhadores que dedicam suas vidas e seus conhecimentos para prestarem serviços e manter a indústria do Turismo, protegê-los é urgente. A vulnerabilidade do trabalhador necessita ser levada a sério.
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