Ivan Martins, Marina Hastenreiter & Mayra Laborda
Sabe-se que a pandemia da Covid-19 causou impactos em todo o mundo e, no âmbito do trabalho, ela expôs e potencializou contradições e precariedades impostas à classe trabalhadora. No que se refere ao trabalho a distância, ou seja, o trabalho que acontece fora do ambiente das empresas, presenciamos sua intensificação, visto que tornou-se a única modalidade de trabalho viável frente à obrigatoriedade do isolamento social.
Conforme Antunes (2009), o trabalho no setor de serviços e o trabalho em casa são duas tendências do mundo do trabalho que podem representar formas perversas de precarização. Entretanto, é importante sinalizar que existem diferentes formas de trabalho a distância ou em casa, como o teletrabalho e o home office.
O teletrabalho pode acontecer em qualquer lugar que tenha acesso à rede e/ou às tecnologias de informação e comunicação (TICs), e não necessariamente na residência do funcionário (Brasil, 2017; Ebert, 2019). Por outro lado, o home office acontece na casa do funcionário, podendo haver a intercalação de atividades presenciais no espaço físico da empresa e o uso, ou não, de TICs (Brasil, 2017; Rasfalki & Andrade, 2015). Além disso, de acordo com Ebert (2019), no home office a empresa deve custear os equipamentos e os insumos necessários para execução do serviço em casa assegurando a integridade física e psicológica dos trabalhadores. Porém, o que se observa, na maioria das vezes, são empresas e trabalhadores usando o termo home office, quando na verdade se trata apenas de teletrabalho e trabalho em casa. Esse uso indiscriminado ficou ainda mais claro no contexto da pandemia, no qual as empresas utilizaram o imaginário sobre home office para intensificar a exploração dos trabalhadores durante o isolamento social.
Ao analisar a situação da classe trabalhadora durante a pandemia, Antunes (2020) aponta que ela já era, antes mesmo da pandemia, de extrema e crescente precarização, baseada em processos como: opressão e exploração desigual de mulheres, negros, imigrantes, povos tradicionais e grupos LGBTQIA+; crescimento da informalidade, da precarização e do desemprego estrutural; e utilização do avanço tecnológico como forma de escravidão digital. E a pandemia intensificou ainda mais esses processos.
Nesse contexto, os trabalhadores do setor de agência de turismo foram fortemente afetados de diferentes maneiras: demissões, diminuição de salário, perda de direitos e migração para o modelo de trabalho em casa sem garantia dos recursos adequados. Em matéria aqui do blog, Blessmann e Censon (2021) discutem se a adaptação a essa realidade foi realmente uma escolha dos trabalhadores.
Aqui, nós iremos apresentar como ficaram as condições de trabalho para esses trabalhadores do setor de agências de turismo que migraram para o modelo de trabalho em casa durante o período de isolamento social em função da pandemia da Covid-19. Tendo em vista a complexidade desse setor, consideramos na pesquisa que ele é composto por agências de viagens e turismo, consolidadoras e empresas de seguros de viagem.
Crédito: Correio Braziliense.
Vamos ver, então, 7 fatores que influenciam as condições de trabalho e como os trabalhadores de agências de turismo foram afetados por eles.
1. Jornada de trabalho
Mas extraoficialmente a gente tem que estar sempre disponível. Não existe uma 'parada de almoço'. Se alguém te chamar uma hora da tarde, você vai largar o prato se tiver comendo e vai atender, não importa (Trabalhadora em agência de viagens e turismo, 36 anos, com 7 anos de empresa).
A jornada de trabalho é a quantidade de horas por dia que o trabalhador gasta no trabalho. Por lei, essa jornada deve ser de até 8 horas diárias. Mas o que vemos no setor de agências é um trabalho flexível, que acaba por ocupar o dia todo e a semana toda. Mesmo antes da pandemia e do trabalho remoto, os trabalhadores já trabalhavam bem mais que o definido por lei – e, na maioria das vezes, sem receber nada a mais por isso. Essa situação pode causar exaustão, insatisfação com o trabalho e frustração nos trabalhadores. Ainda assim, alguns trabalhadores já se acostumaram com essa realidade e apresentam certa desesperança sobre o fim desse tipo de exploração.
2. Rotina de atividades
Então, o que fazíamos antes da pandemia? A gente vendia muito. E agora? Agora a gente cuida de quem ia viajar e desistiu (Trabalhador em consolidadora, 51 anos, com 3 anos de empresa).
A rotina de atividades dos trabalhadores de agências, especialmente nos meses iniciais da pandemia, sofreu uma grande transformação. Com a paralisação compulsória do turismo, as vendas, que ocupam boa parte do trabalho no setor, foram totalmente suspensas. Ao mesmo tempo, esses trabalhadores tiveram que lidar com cancelamentos, remarcações, problemas legais, tudo num momento em que nem as legislações estavam muito claras sobre o que deveria ou poderia ser feito. Muitos entrevistados contaram que novas atividades vieram para acrescentar ao seu trabalho, como lives para aprender coisas novas, treinamentos em tecnologia e o próprio aprendizado sobre gerenciamento de crises. Por outro lado, as mesmas atividades eram extremamente desconfortáveis quando eram obrigatórias e sem uma função útil para o trabalho.
3. Ambiente do trabalho
Tive que adaptar o espaço físico da minha casa, que não é direcionado a isso. Eu realmente não tenho espaço físico em casa pra poder trabalhar da forma como eu gosto de trabalhar, com as mesmas condições que eu tenho no escritório (Trabalhadora em agência de viagens e turismo, 26 anos, com 7 anos de empresa).
Usar o espaço de casa para trabalhar não é o mesmo que ter seu ambiente no trabalho. Questões como espaço físico, silêncio e mobília adequada são fundamentais para concentração e produtividade. Além disso, o ambiente é importante para encontrar os colegas de trabalho, conviver e trocar informações sobre a própria atuação profissional. Boa parte dos entrevistados aprovou o fato de não precisar se deslocar (principalmente aqueles que residiam mais longe do trabalho), mas a maioria afirmou sentir falta da convivência e sentir que o trabalho levou estresses e incômodos que não deveriam ao ambiente de casa.
4. Recursos necessários para trabalhar
Celular é o meu e computador é até do meu filho, na verdade (Trabalhadora em agência de viagens e turismo, 50 anos, com 18 anos de empresa).
Os recursos mais apontados pelos trabalhadores do setor de agências foram internet, computador, celular, sistemas de reservas, programas de reunião online e impressoras. Mas é importante pensar que outros recursos são importantes também, como espaço adequado, silêncio e mobília. A pesquisa mostrou que nenhuma empresa assumiu qualquer custo (mesmo que em parte) de uso da internet, mobília e espaço. Isso significa que no trabalho remoto, os trabalhadores foram obrigados a usar dos próprios recursos, enquanto a empresa se eximiu dessas responsabilidades.
5. Remuneração salarial
Todo mundo que trabalha com comissionamento foi bastante afetado. A gente teve uma perda aí de vendas na ordem de 75% do total (Trabalhador em empresa de seguro viagem, 52 anos, com 9 anos de empresa).
A remuneração salarial talvez seja o fator de condições de trabalho mais percebido pelos trabalhadores – mesmo porque é o que garante, diretamente, a sobrevivência das famílias. Aqui, o maior problema teve a ver com o sistema de comissões. Como as comissões não são fixas e não são incluídas no salário nem nos benefícios, assim que a pandemia congelou as vendas, a remuneração dos trabalhadores sofreu uma queda brusca. Os entrevistados falaram em quedas entre 35% e 80% da remuneração mensal. No geral, há uma sensação de compreensão por parte dos trabalhadores, que veem essa queda como consequência apenas da queda de vendas. No entanto, cabe notar que esse é um sistema planejado pelas empresas para diminuir suas responsabilidades com direitos salariais e ainda estimular os trabalhadores a uma produtividade exaustiva.
6. Saúde do trabalhador
A gente quer que a rotina volte, mesmo que ela volte modificada, mas que ela retorne logo (Trabalhador em agência de viagens e turismo, 53 anos, com 20 anos de empresa).
A pandemia teve impactos devastadores na questão de saúde dos trabalhadores. Não será abordado aqui os efeitos da Covid-19 ou do isolamento na classe trabalhadora, mas somente como o trabalho remoto durante o isolamento afetou os trabalhadores do setor de agências. Tanto na saúde física quanto mental, os entrevistados apontaram a rotina de atividades como algo importante. A rotina é vista como benéfica à saúde, pois estimula a regularidade de exercícios e da alimentação e traz o contato com colegas de trabalho. embora as condições de saúde física e mental dos trabalhadores tenham sido bastante prejudicadas nesse período, nenhuma das empresas ofereceu qualquer auxílio para questões de saúde. Ainda que os próprios colegas de trabalho (especialmente os gerentes e chefes de equipe) se oferecessem como apoio, isso não equivale a orientações de profissionais da área de saúde e segurança do trabalho.
7. Direitos trabalhistas
Uma perda absurda! A gente não sabe se vai ter férias, a gente não sabe se vai ter 13º, a gente não sabe nada. A gente está trabalhando porque a gente precisa do dinheiro (Trabalhador em consolidadora, 50 anos, com 10 anos de empresa).
Quando perguntados sobre direitos trabalhistas, a maioria dos entrevistados pensou somente em salário ou outras questões financeiras. Isso mostra como os trabalhadores não conseguem mais sequer ver questões como jornada adequada, condições decentes e saúde do trabalho como direitos. Além disso, parte desses trabalhadores afirmou não ter tido perda de direitos – usando até mesmo o termo “adaptação de direitos”. Mas olhando os outros fatores fica claro como houve uma perda enorme de direitos, permitindo uma verdadeira devastação das condições de trabalho.
Vimos que em todos os sete fatores houve algum tipo de precarização nas condições de trabalho no setor de agências de turismo. Mas o que esses trabalhadores pensam coletivamente sobre isso?
CONTRADIÇÕES DO TRABALHO NO SETOR DE AGÊNCIAS
Em outra matéria aqui do blog, Conceição (2021) discute a alienação e o estranhamento no turismo. Em nossa pesquisa, apesar de todos os prejuízos nas condições de trabalho, ainda observamos alienação desses trabalhadores sobre seus direitos e suas condições reais de trabalho. Os entrevistados se dividem entre os que criticam e os que defendem a classe dominante. Uma parcela menor deles se entende como trabalhadores em condições precarizadas e se percebe como o agente que paga a conta da pandemia, aquele que teve o salário reduzido, aquele que perdeu direitos. A outra parte, majoritária, é seduzida pelo discurso do Capital, que fantasia o trabalho em casa bancado pelo trabalhador de “home office”, fantasia a produtividade que adoece o trabalhador de “comissionamento” e fantasia o trabalhador precarizado de “empreendedor” e “colaborador”. Esses trabalhadores caem nas armadilhas do patronato, sendo em grande medida influenciados pelo longo tempo de empresa. Em resumo, o que se nota são tentativas bem sucedidas de esconder o real sentido dos novos contornos do trabalho.
O resultado desse cenário é uma classe trabalhadora fragmentada, que resiste a se organizar em sindicatos, que é escrava do mundo digital, que tem o tempo de não trabalho esfacelado e sua legislação social protetora do trabalho desmanchada (seja em relação à jornada, à remuneração salarial ou às condições de trabalho). Os trabalhadores não se enxergam como classe. A disputa entre eles é intensificada a partir de um cenário que os coloca como inimigos uns dos outros.
Com o trabalho remoto surgem outras questões como a transformação do tempo de não trabalho (tempo de ócio, tempo de lazer, tempo de descanso, tempo da família) em tempo de trabalho extra, que não é reconhecido como tal e, portanto, não é remunerado. Vive-se em função do trabalho! Com o trabalho em casa, o trabalhador assume os custos da internet, do aluguel do espaço, da luz, da água, da climatização, do silêncio, muitas vezes perdendo os benefícios até mesmo de alimentação. O trabalhador agora paga pelo próprio trabalho, enquanto a empresa se exime dos custos. Por fim, com a pandemia, o trabalhador perde salário, perde direitos, dobra sua quantidade de trabalho, mas aceita tudo isso porque a outra opção é ser um dos 300 mil que perderam o emprego (Teberga, 2021). Vitória dupla do Capital!
Ademais, pontuamos nosso receio de que as atuais condições de trabalho se estendam para o contexto pós-pandêmico, uma vez que quando o Capital experimenta possibilidades de intensificar a exploração da força de trabalho e a extração do mais-valor (lucro), dificilmente aceita retroceder e abrir mão dos benefícios econômicos adquiridos.
Durante a pandemia, o trabalho no setor de agenciamento se mostrou ainda mais importante para o turismo. O apoio e suporte dos trabalhadores do setor foi fundamental para muitos clientes, tanto para aqueles que precisaram reorganizar viagens já marcadas quanto para aqueles que foram pegos de surpresa durante as viagens. Assim, esperamos grandemente que este texto alcance a classe trabalhadora, destacadamente às trabalhadoras e aos trabalhadores do setor de agenciamento de turismo, para que estes possam se apropriar do conhecimento científico, compreendendo com clareza sua realidade material e alguns caminhos para sua modificação.
AGRADECIMENTOS
Agradecemos às trabalhadoras e aos trabalhadores que doaram uma parte de seu tempo para contribuir com essa pesquisa. Graças a seus relatos, nossos resultados poderão servir como ferramenta de reflexão para toda a classe trabalhadora, em especial àquela que atua no setor de agências de turismo.
*O artigo original foi publicado na Revista Brasileira de Pesquisa em Turismo no dia 14 de janeiro de 2021.
REFERÊNCIAS
Antunes, R. (2009). Os Sentidos do Trabalho: ensaio sobre a afirmação e a negação do trabalho (2a ed.). São Paulo: Boitempo.
Antunes, R. (2020). Coronavírus: o trabalho sob fogo cruzado. São Paulo: Boitempo.
Blessmann, L.; Censon, D. Nós escolhemos nos adaptar? Sobre o trabalho em agências de viagens, mas também sobre o mundo social. Labor Blog, 2021. Disponível em https://www.labormovens.com/post/n%C3%B3s-escolhemos-nos-adaptar-sobre-o-trabalho-em-ag%C3%AAncias-de-viagens-mas-tamb%C3%A9m-sobre-o-mundo-social.
Brasil. Lei nº 13.467, de 13 de julho de 2017. Altera a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), aprovada pelo Decreto-Lei no 5.452, de 1o de maio de 1943, e as Leis nos 6.019, de 3 de janeiro de 1974, 8.036, de 11 de maio de 1990, e 8.212, de 24 de julho de 1991, a fim de adequar a legislação às novas relações de trabalho. Recuperado de: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/lei/l13467.htm
Conceição, R. Para um debate sobre o estranhamento do trabalho no turismo. Labor Blog, 2021. Disponível em https://www.labormovens.com/post/para-um-debate-sobre-o-estranhamento-do-trabalho-no-turismo.
Ebert, P. (2019). O teletrabalho na reforma trabalhista: impactos na saúde dos trabalhadores e no meio ambiente do trabalho adequado. Revista Dos Estudantes De Direito Da Universidade De Brasília, (15), 163-172. Recuperado de https://periodicos.unb.br/index.php/redunb/article/view/22387
Rafalski, J., & De Andrade, A. (2015). Home-Office: Aspectos exploratórios do trabalho a partir de casa. Temas em Psicologia, 23(2), 431-441.
Teberga, A. Turismo perde mais de 300 mil empregos em 2020. Labor Blog, 2021. Disponível em https://www.labormovens.com/post/turismo-perde-mais-de-300-mil-ocupa%C3%A7%C3%B5es-formais-em-2020
Comments