Bianca Paes | Mestranda em Turismo/USP
Manifestação dos guias de turismo em Paris, 06.07.2020. Crédito: Christian Hartmann.
Enquanto os governos e grandes empresas se preocupam em sugerir perspectivas e tendências do mundo pós-pandemia, interessados na recuperação dos mercados, uma parcela da classe trabalhadora se preocupa com o presente, com a sobrevivência à pandemia.
Neste cenário, as discussões a respeito da renda mínima (ou renda básica) voltam à tona em todo o mundo e, apesar do projeto precisar ser pauta universal e permanente, trata-se de uma necessidade emergente e de subsistência para períodos de crise. O Programa Mundial de Alimentos (PMA) da ONU estima que outros 130 milhões de pessoas sejam levadas à falta de alimentos por causa da pandemia e, segundo Miguel Barreto, diretor regional para a América Latina e Caribe da instituição, há “a necessidade de ampliar os programas de transferência de renda, principalmente em regiões com alto índice de trabalhadores informais” (Pamplona, 2020). Além disso, complementa que a crise se agravará nesses países, pois com a paralisação de tais trabalhadores, não haverá renda para manutenção de sua alimentação.
No Brasil, a taxa de trabalhadores informais era de 40,6% até fevereiro e, durante a pandemia, já se somam 12,8 milhões de desempregados destacando-se que a maioria desses postos de trabalho perdidos são de trabalhadores informais e, entre eles, o setor de serviços foi o mais afetado (IBGE, 2020).
Na tentativa de minimizar os impactos da pandemia para os trabalhadores informais, microempreendedores individuais (MEI), autônomos e desempregados, foi criado o auxílio emergencial do governo federal. No entanto, a concessão do auxílio possui uma série de excludentes, tais como teto de rendimentos tributáveis em 2018, limite de renda familiar até 3 salários mínimos etc., além dos erros de análises do sistema, configurando-se como uma política paliativa e insuficiente às necessidades da sociedade. O valor desse auxílio (R$600,00) é insatisfatório para o sustento de muitas famílias, pois está abaixo da média salarial mensal da maior parte dos trabalhadores assistidos (Jornal da USP, 2020). Então, de acordo com a professora Ana Carolina Rodrigues (FEA/USP) “o que acontece é que essas pessoas precisam escolher entre ficar em casa e se proteger ou irem trabalhar para sobreviver” (Jornal da USP, 2020).
Entre as atividades econômicas, o turismo apresenta elevado índice de informalidade: 52% (IPEA, 2017). Além disso, o trabalho no turismo é marcado por outras manifestações de precariedade, tais como: longas jornadas, baixos salários, horários flexíveis e ações antissindicais. E, entre os trabalhadores do turismo, o guia de turismo encontra-se na posição de maior fragilidade, principalmente porque apenas 5% dos profissionais possuem vínculos empregatícios (RAIS, 2018). Os demais guias são autônomos ou possuem o registro como MEI e, em ambos os casos, a remuneração é por demanda, ou seja, só recebem pagamento se prestarem serviço e, com a paralisação do turismo no período pandêmico, ficaram sem fonte de renda.
Ainda assim, muitos deles não conseguiram ter acesso ao auxílio do governo federal. A Comissão dos Guias do Estado de São Paulo realizou um levantamento, em abril, a fim de subsidiar sua justificativa para a preposição do Projeto de Lei e, com isso, identificou que apenas 40% dos guias de turismo deste estado receberam o auxílio. A Associação São-Roquense de Guias de Turismo reproduziu o levantamento e identificou que, entre seus associados, apenas 35% receberam o referido auxílio.
Diante da evidente necessidade de assistência e da não suficiência do auxílio fornecido, essa parcela da classe trabalhadora começou a se organizar para garantir seu direito, e não apenas no Brasil.
Uma demanda global
É comum a grande mídia propagar o discurso da “reinvenção” e do “empreendedorismo” nos momentos de crise, fortalecendo as narrativas neoliberais. Muitos trabalhadores migram de atividade nesses períodos, não por opção, mas por falta de escolha e de assistência, como única alternativa para sustento e sobrevivência de sua família.
Nguyen (2020) relata o caso dos guias de turismo vietnamitas que perderam seus empregos desde que o país bloqueou a entrada de estrangeiros em março. Agora, esses trabalhadores, por falta de auxílio governamental, “grappling with the imperative of doing something else” e estão arrumando empregos temporários em áreas distintas.
De acordo com Chauhan, vice-presidente da Federação dos Guias de Turismo da Índia, 3.500 guias do país já perderam sua fonte de renda por causa da crise pandêmica e exige do governo local um pacote de auxílio, justificando que outros países como Estados Unidos, Reino Unido, Indonésia, Cingapura e Tailândia já garantiram auxílio emergencial à esses trabalhadores. Shamsuddin Khan considera que a instabilidade no setor permanecerá por aproximadamente um ano, e conta que no país, para que se possa exercer a profissão de forma regular, os trabalhadores devem concordar em não desenvolver outra atividade remunerada, dessa forma, estão completamente sem renda (Jaiswal, 2020).
Já na Tailândia pelo menos 30 mil guias de turismo ficaram desempregados com a diminuição dos fluxos turísticos. Segundo Jarupol Rueangket, presidente do Conselho de Turismo da Tailândia, a maior parte desses trabalhadores não tem outros empregos, nem reserva financeira e, por isso, sugeriu ao conselho que se elaborassem propostas para enviar ao governo, solicitando empréstimos com juros baixos (National, 2020b). Meses antes, o presidente da Associação de Guias de Turismo já havia escrito uma carta ao Ministro do Turismo e Esportes solicitando medidas de auxílio à categoria, entre elas, o auxílio emergencial (National, 2020a).
A alternativa de fornecer empréstimos a categoria não foi exclusiva da Tailândia. Na Turquia, o governo também prestou assistência dessa forma (Spinks, 2020), o que não soa uma oportuna possibilidade para a categoria, visto que não há perspectiva de retomada das atividades turísticas e, ainda assim, a reabertura do turismo não garante imediata reintegração do guia no mercado de trabalho, conforme apontado por Armeno (2020). Mesmo após o término do estado de calamidade na Espanha, a circulação de turistas ainda é escassa, especialmente dos turistas habituados a contratar guias de turismo, que agora não têm mais os grupos organizados pelas agências e há pouquíssima demanda individual (Armero, 2020).
A reabertura do turismo em Paris foi marcada por protestos dos guias de turismo em frente ao Museu do Louvre. Os trabalhadores se reuniram segurando retratos da Mona Lisa e solicitando apoio governamental para superação da crise, já que em maio a França anunciou medidas de apoio ao setor do turismo, mas, segundo Margot Schmitz, esse auxílio não chegava aos guias de turismo (Olive, 2020).
Do outro lado do Atlântico, em terras brasileiras, ocorreram situações semelhantes aos exemplos citados anteriormente. Reportagens na mídia “romantizaram” a situação de precariedade dos guias de turismo sem emprego e renda em meio a pandemia, que tiveram de migrar ou improvisar novas atividades econômicas (Maia, 2020; Vessoni, 2020). Ocorreram medidas de apoio ao setor de turismo que não chegaram aos guias (Brasil, 2020a), além da oferta de empréstimos (Brasil, 2020b) e manifestações solicitando a renda emergencial (Atzingen, 2020; Siston, 2020).
A luta brasileira
A luta dos guias de turismo brasileiros pelo auxílio emergencial acompanha as reivindicações mundiais. No entanto, diante do pouco empenho da entidade de representação nacional, as mobilizações da classe se deram de forma organizada por estado. Em alguns, a liderança do movimento parte de Associações, em outros, de Comissões ou ainda, em menor número, de Sindicatos.
Esses grupos organizados de trabalhadores procuraram deputados estaduais para dar entrada em Projetos de Lei (PL), que autorizassem o Poder Executivo a utilizar recursos para atenuar os efeitos da pandemia para os guias de turismo daquele estado. É importante destacar que, por se tratar de um projeto oneroso para o Estado, ele não pode obrigar o Poder Executivo a se comprometer com essa “despesa” e, portanto, limita-se a autorizar, por parte do legislativo, a utilização de recursos. Em suma, os projetos pleiteiam uma renda básica emergencial aos guias de turismo durante o período da pandemia em valores referentes à um salário mínimo ou um salário mínimo estadual. Dentre as principais justificativas apresentadas pelos PLs, tem-se que: (1) o setor do turismo foi o primeiro a parar suas atividades, (2) a maioria dos guias é autônoma e não é assistida por direitos trabalhistas, (3) o turismo depende da localidade para sua experiência, o que restringe adequações para o on-line e impede que o guia continue em atividade durante o isolamento, e (4) possivelmente o turismo será uma das últimas atividades econômicas a se recuperar, pois viagens e atividades de lazer podem ser vistas com serviços supérfluos e, portanto, só voltarão a ser consumidas após considerável estabilização do restante da economia.
Os guias de turismo do Rio de Janeiro foram os primeiros a darem entrada no PL estadual, com a solicitação da renda básica emergencial em abril. Após diversos trâmites, os guias foram incluídos em um PL conjuntamente a outras categorias profissionais que solicitavam o mesmo pleito. Na sequência, pautados nos argumentos acima mencionados, foram os guias de São Paulo, seguidos pelo Paraná e outros estados. Diante de tais mobilizações, outras feituras surgiram, tais como: (1) PL’s com a mesma finalidade no âmbito municipal, como no caso de Foz do Iguaçu/PR, Maceió/AL e Rio de Janeiro/RJ; (2) projetos de arrecadação de cestas básicas, como em Campinas/SP, Aracaju/SE, Ilhéus/BA, Fortaleza/CE, São Luís/MA, entre outros; e (3) cartão de renda cidadã emergencial para compras no mercado e na farmácia para guias de turismo do Amapá.
Ao todo, os guias brasileiros articularam 11 iniciativas de PL’s (estaduais e municipais) sugerindo renda básica à categoria. Dentre todos eles, apenas o do estado Rio de Janeiro já foi aprovado e sancionado, mas não significa que os trabalhadores já receberam o valor financeiro. A luta agora envolve a regulamentação da lei para seu efetivo cumprimento. Em Santa Catarina, durante a tramitação, o projeto teve o valor reduzido, se equiparando ao auxílio federal, acrescentando-se também as mesmas restrições. Em São Paulo, seguem na luta pelo trâmite em regime de urgência na ALESP, o que poderá garantir que os processos sejam agilizados.
Em Foz do Iguaçu/PR, a Prefeitura negocia uma “contraproposta” ao PL protocolado pela Associação de Guias. Ao invés de fornecer renda básica aos trabalhadores, o Poder Executivo propõe contratar os guias de turismo para passeios com os moradores locais, em um programa de retomada do turismo em Foz do Iguaçu. O projeto ainda não foi aprovado, mas sugere uma série de debates. Obviamente, para guias que estão sem trabalhar há quase 5 meses, a possibilidade de obtenção de renda por meio de prestação de serviços à Prefeitura é uma alternativa para o sustento de sua família. Porém, é inegável questionar o risco ao qual os trabalhadores estarão se expondo em meio à pandemia em um projeto precoce de retomada do turismo.
E o que todos esses projetos têm em comum? Em que a luta dos guias de turismo do mundo todo se assemelha? A busca desses trabalhadores por condições mínimas para sobreviver à pandemia. Não há como se discutir qualquer cenário pós-pandêmico, sem antes garantir a sobrevivência dos trabalhadores durante a pandemia, na qual ainda estamos imersos, e é ilusão imaginar que a retomada será tão breve.
Referências:
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Atzingen, P. (2020, julho 16). Indignados com governo do Rio, Guias de Turismo voltam às ruas. Recuperado de https://diariodoturismo.com.br/indignados-com-governo-do-rio-guias-de-turismo-voltam-as-ruas/?fbclid
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Jornal da USP. (2020, abril 8). Auxílio emergencial de R$ 600 não será suficiente para sustento das famílias.
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